Antes de comentar o celebrado ensaio de Walter Benjamin, “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, quero dedicar um pequeno espaço para saudar a iniciativa da Zouk Editora, de Porto Alegre, ao lançar essa importante obra de Benjamin, em tradução (do alemão) de Francisco De Ambrosis Pinheiro Machado.
Como diz o tradutor, que também faz a apresentação do ensaio, “o leitor tem aqui a tradução, inédita no Brasil, da segunda versão alemã do ensaio” benjaminiano. WB “trabalhou entre dezembro de 1935 e final de janeiro de 1936, e que foi a primeira considerada por ele como pronta para publicação”.
A versão do ensaio de Benjamin, ora trazido pela Zouk, ficou muito tempo tida como desaparecida. “Só foi encontrada”, informa Machado, “nos arquivos de Max Horkheimer, em Frankfurt, em meados da década de 1980 e publicada, pela primeira vez, em 1989, no volume suplementar VII de Gesammelt Schriften [Obras Reunidas]”.
Desta forma, é um privilégio para o leitor poder contar com essa edição brasileira de tão importante obra intelectual, tanto mais pelo cuidado editorial, as belas fotografias e pelo bom gosto geral do pequeno volume deste ensaio fundamental para entender o que se passa com a arte - essa incógnita permanente - até o momento atual.
O ensaio de Benjamin, objeto deste breve comentário, em que pese a densidade do tema proposto, está afiliado a um sentido claramento político a respeito da cultura em geral e da obra de arte em particular. Para além disso, trata-se de um texto identificado com o pensamento de Marx.
Quando Benjamin diz que a reprodução técnica da obra de arte corresponde precisamente à reprodução técnica das mercadorias, está inscrevendo sua identificação à materialidade da produção capitalista, portanto dizendo respeito à vida econômica, à infraestrutura da sociedade.
Ele reconhece também que a superestrutura - embora de percepção mais lenta, diz Benjamin, acaba mimetizando a esfera da produção material.
Assim, ele abandona e supera as categorias do idealismo romântico (criatividade, mistério, genialidade, perenidade e outras) em favor de conceitos que possam concorrer para políticas artísticas revolucionárias - seja na infraestrutura, seja na superestrutura.
A capacidade moderna de reproduzir tecnicamente a obra de arte, diz WB, em especial no cinema e na fotografia, modifica a própria natureza e função da arte como um todo. A revolução que aí se operou - primeiro por via da técnica, segundo, por via das novas noções sensíveis que são suscitadas neste processo - resulta na perda da famosa “aura” da obra de arte.
E o que significa essa “aura” que se perdeu? Ora, a obra de arte tradicional era portadora de dois registros facilmente identificáveis: 1) a autenticidade do original; 2) o pertencimento a uma dada tradição cultural, historicamente identificada e, portanto, indelevelmente selada com uma marca de classe sócio-econômica.
Para Benjamin, essa “aura” que se perdeu representa uma vantagem, que ele classifica de revolucionária. As massas, no afã de se apropriarem das novas obras de arte (como no cinema), logram derrotar a “tradição” e a “autenticidade” - que a tornavam singulares, irrepetíveis e originais - da obra de arte, os dois elementos constitutivos da velha “aura”.
WB fala da aura como “a manifestação irrepetível de uma distância”. A distância, no caso, não se refere à distância métrica-euclidiana, mas ao caráter inacessível mesmo da obra de arte comumentemente realizada para a fruição das elites. Esta distância se anula face à vontade da massa de se apropriar legitimamente dos objetos artísticos através da sua
reprodução em série.
Agora, diz Benjamin, há uma desteologização da produção artística e uma dissolução daquelas categorias que a sustentaram no ritual da chamada “arte burguesa” (que para ele, é quase um pleonasmo). “No instante [...] em que a medida da autenticidade não se aplica mais à produção artística, resolve-se toda a função social da arte. No lugar de se
fundar no ritual [teológico], ela passa a se fundar em uma outra práxis: na política”.(Benjamin, p. 35).
Ao contrário das abordagens puramente esteticistas, Benjamin vê na desocultação da obra de arte uma oportunidade de politização radical da superestrutura estética.
“A humanidade, que antigamente, em Homero, era objeto de espetáculo para os deuses olímpicos” - afirma Benjamin -, “se converteu agora em espetáculo de si mesma. Sua autoalienação alcançou um nível que lhe permite viver a sua própria destruição como um gozo estético de primeira ordem. Este é o esteticismo da política que o fascismo sustenta. O comunismo o contesta com a politização da arte”.
Não é de graça que Walter Benjamin foi chamado de “filósofo dos extremos”. Sem jamais ter sido stalinista, Benjamin em alguns trechos contrapõe o “comunismo” ao fascismo, este em ascenso crescente em toda a Europa, nos anos 1930.
O “comunismo” conhecido, nada mais era do que o stalinismo do “grande expurgo” na URSS, ocorrido precisamente entre 1934 e 1939, com políticas persecutórias do Estado policial contra toda a velha guarda das grandes jornadas revolucionárias de 1905 e 1917.
Outra contradição aparente neste elogiável ensaio de Benjamin, mas que não o diminui em nada, é o fato de ele ter recusado uma escrita da história em termos de progresso – que seria o elogio acrítico da “civilização” e da “produtividade”.
WB propõe-se interpretar a história [“Teses sobre o Conceito de História”, (1940)] do ponto de vista das suas vítimas, das classes e povos esmagados pelo carro triunfal dos vencedores. Nesta perspectiva, o progresso aparece como uma tempestade maléfica que distancia a humanidade do paraíso original e que fez da história “uma catástrofe que
continua a empilhar ruína sobre ruína”.
Para o pessimista Benjamin, a Revolução (“comunista”) perdeu o papel de locomotiva da história, para passar a ser o sinal de emergência que a humanidade puxa antes do trem se despencar no abismo profundo. Ele reconhece, contudo, a contribuição positiva do desenvolvimento dos conhecimentos e das técnicas, mas recusa-se a considerá-las, de forma mecânica, como um progresso humano.
Sem negar o potencial emancipador da tecnologia moderna, ele preocupou-se com o seu domínio social, pelo controle da sociedade sobre as suas relações com a Natureza. A sociedade sem classes do futuro deverá colocar um fim não somente na exploração do homem pelo homem, mas também na exploração da Natureza, substituindo as formas destruidoras da tecnologia atual por uma nova modalidade de trabalho, “que longe de
explorar a Natureza, pode fazer nascer dela as criações virtuais adormecidas no seu seio”.
É verdade que esse texto acerca do conceito de história foi escrito em 1940, portanto alguns anos depois de “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, que é de janeiro de 1936. Mas a distância temporal não pode apagar o exercício dialético do pensador que às vezes resvala em contradições perfeitamente passáveis, haja vista o grau de complexidade e profundidade das suas preocupações intelectuais. Tanto mais em um período regressista, de medo viral coletivo, onde o que mais causava náusea, no dizer de Hannah Arendt, não era o fato de muitos virarem declaradamente nazifascistas, por conveniência, mas a opção pusilânime pela passividade e resignação de tantos intelectuais alemães face ao vertiginoso ascenso hitleriano. Hannah e Walter não foram
desses intelectuais com alma de coelho assustado, muito ao contrário.
Mas Walter Benjamin também pagou um preço por sua ousadia intelectual neste ensaio sobre a reprodutibilidade da obra de arte. Seus prognósticos acerca das tendências libertárias e democratizantes da arte jamais se realizaram. Ao contrário, Theodor Adorno e, mais tarde, Guy Debord foram pródigos em apontar um certo esgotamento da arte, como capacidade de promover a desalienação e combater a lógica do valor de troca.
Para Adorno, que se debruçou mais no que chamou de indústria cultural, portanto, olhando de um ponto mais alto e mais abrangente do que a obra de arte em si, entre a segunda metade do século 19 até 1930, a arte vanguardista promoveu a destruição das formas artísticas tradicionais sob uma militância sobretudo crítica. Depois disso, as chamadas vanguardas formalistas foram vencidas pela hegemonia das mercadorias, não
lhes restando mais nenhuma função crítica e/ou rebelde.
Guy Debord, em 1967, na obra “A sociedade do espetáculo”, faz uma análise prospectiva dos efeitos da alienação nos homens, ou seja, verifica a contradição antagônica entre os indivíduos e as forças por eles mesmos criadas e que se voltam contra eles como seres autônomos. Debord aponta que a economia, antes um meio, acabou sendo um fim. Por isso vivemos na sociedade do espetáculo, quando “a economia se desenvolve por si
mesma” e onde “todos devem submeter-se à lei da troca se não quiserem perecer”.
O espetáculo - no sentido debordiano - faz uma noção utilitarista de suportes culturais como o cinema, o esporte e a arte propriamente dita. No espetáculo há um rebaixamento das manifestações culturais e esportivas, que acabam sendo veículos privilegiados do valor de troca, em detrimento do valor de uso. Como dizia Debord, o espetáculo é uma colonização da vida cotidiana, onde o mentiroso mente para si mesmo, e o verdadeiro é
um momento do falso.
A partir dos anos 1980, não por acaso, com o advento da hegemonia neoliberal, a cena artístico-cultural é tomada por um fenômeno sem precedentes: as grandes empresas, bancos e as mega corporações começam a fazer da arte o seu negócio. A área cultural foi invadida pelos perfumados gladiadores de colarinho branco e muito dinheiro para investir
no setor. Ficou "de moda" apostar na arte, "não somente como investimento financeiro, mas também como instrumento de realce da imagem, num setor da sociedade que antes era visto como, se não filisteu, pelo menos fortemente ignorante e indiferente à arte" (Chin-Tao Wu, 2006).
Nem o pior momento do pessimismo melancólico de Walter Benjamin poderia prever tamanho despropósito neste desavergonhado utilitarismo da obra de arte, agora profundamente comprometida e mergulhada mesmo no que se pode muito bem denominar de mercado de arte. Se Adorno, na década de 1930, já falava em “fim da arte”, o que diria agora com essa conversão inexorável ao valor de troca mais rebaixado.
Todas as categorias cogitadas por Benjamin ao falar da “perda da aura” da obra de arte, sua perspectiva democratizante, com a apropriação das massas, etcetera, ficam em suspenso e quase passam a carecer de sentido face ao processo de hiper-über-reificação experimentado pela obra de arte, agora sob o jugo do mercado corporativo de arte.
A colonização intensiva do território da arte pelas corporações, hoje, compreende aquilo que Bordieu denominou de “capital cultural”, ou seja, uma coleção de discursos, práticas e valores simbólicos próprios do topo da cadeia alimentar darwiniana: reserva de valor face às oscilações tempestivas das moedas em crise, instrumento de relações públicas,
autopromoção, associação à contemporaneidade e ao
up to date, decoração chic de ambientes de alta classe, autocrítica tardia e conveniente do filisteu convicto (vide o
boss da siderurgia sul-rio-grandense), etc.
Isto posto e face à gravidade do tema, já que o espetáculo da troca hoje faz parte até da nossa constituição molecular (vide o domínio das sementeiras da transgenia em estreita associação com os fabricantes de venenos para as lavouras de grãos), devo dizer que o ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, do enorme e admirável
intelectual Walter Benjamin, se trata de um texto quase ingênuo, inscrito na pré-história da nossa inocência crítica e que deve ser arquivado na estante mental de cada um de nós como obra de classificação da fase romântica da nossa superestrutura intelectual.
A arte de fato não morreu, virou a purpurina da mercadoria que brilha no azul da nossa alienação infinita. Nem dez Benjamins melancólicos poderiam prever o que nos aconteceu.
(*) Cristóvão Feil, sociólogo e editor do blog Diário Gauche.
E-Mail: dgfeil@gmail.com