Tuesday, 3 December 2013

Envolver em vez de se “des-envolver”

IHU

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Envolver em vez de se “des-envolver”

Michèle Sato, professora e pesquisadora, aposta na educação ambiental e na relação com as populações ribeirinhas para garantir um meio ambiente equilibrado

Por: Ricardo Machado | Colaborou: Leonardo Maltchik

Professora e líder do Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Arte – GPEA, Michèle Sato aborda a Educação Ambiental junto às populações das áreas úmidas, ressaltando que historicamente esses grupos respeitam o ritmo e a dinâmica ecológica. Entretanto, os povos ribeirinhos são os mais vulneráveis às mudanças climáticas ocasionadas pelo efeito estufa, pois isso gera impactos diretos na vida das populações. “É preciso debater mais a noção de ‘des-envolvimento’ e toda a noção de progresso que realmente deixa de envolver a sociedade e o ambiente, focando apenas na economia. O desenvolvimento sustentável, ainda que ostente uma face ambiental, continua sendo o velho capitalismo, agora maquiado de um novo chavão que é repetido sem reflexão crítica, como se fosse a única verdade das diversas identidades pulsantes no mundo. Para além do desenvolvimento, estamos precisando de mais envolvimento”, avalia Michèle Sato, em entrevista por e-mail àIHU On-Line.
Quanto à biodiversidade, a pesquisadora aponta que as áreas úmidas pantaneiras são ricas em biodiversidade aquática, no entanto diversas degradações ameaçam esses locais. “O uso exagerado de agrotóxico, por exemplo, pode contaminar os lençóis freáticos ou nascentes de água, pondo em risco não apenas o local, mas toda a complexidade global, uma vez que o ambiente não enxerga a fronteira cartográfica inventada pelos humanos”. O papel da educação ambiental, neste contexto, é “trazer o diálogo socioambiental, aliando cultura e natureza neste campo pedagógico capaz de fazer emergir a educação como mola propulsora das transformações socioambientais”, pondera.
Michèle Sato possui licenciatura em Biologia pela Universidade de Santo Amaro - Unisa, mestrado em Filosofia pela University of East Anglia, doutorado em Ciências na Universidade Federal de São Carlos - Ufscar e pós-doutorado em Educação pela Université du Québec à Montréal. É docente associada ao Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT e líder do Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Arte - GPEA, além de colaboradora em várias outras universidades nacionais e estrangeiras. Colabora nas comissões editoriais de diversos periódicos e é articuladora de diversas redes potencialmente ambientais. Possui várias experiências nacionais e internacionais e é membro do Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como podemos pensar a relação entre o humano e as áreas úmidas da Amazônia e do Pantanal, seu uso e o desenvolvimento das comunidades no contexto histórico?
Michèle Sato – Historicamente, as populações das áreas úmidas possuem uma intrínseca ligação da cultura com a natureza, onde as expressões humanas se conjugam com o ritmo e a dinâmica ecológica. Há um vasto mundo de signos, crenças e mitologia emanado de uma epistemologia ambiental. Em outras palavras, há um saber chamado “tradicional” que, como as ciências, busca responder aos fenômenos naturais e culturais, tirando sustento, acumulando experiências, gerando movimentos de sobrevivência e ainda revelando a subjetividade como elemento pedagógico de geração a geração, como religião, fé, mitos, “causos e assombrações” na construção da felicidade local.

IHU On-Line – Como as comunidades ribeirinhas na Amazônia e no Pantanal convivem com seu hábitat alagadiço? Como fica a questão da preservação ambiental?
Michèle Sato - Há vários estudos técnicos sobre as populações ribeirinhas, com foco na mitigação ecológica , expressões etnográficas, condições geográficas ou situações sociológicas. Cada qual verá as populações vivendo nestes locais de acordo com seus olhares e teorias. Mas creio que todos são unânimes em denunciar as bruscas mudanças ambientais que afetam a cultura desta gente de maneira muito injusta. No caso da mudança climática, por exemplo, não se trata de enfatizar o mercado de carbono  ou evocar a tendenciosa economia verde , mas sobretudo tentar compreender de que maneira estes povos vulneráveis podem sobreviver no enfrentamento da mudança do clima. E, na medida do possível, atuar junto com eles para que uma pedagogia ambiental possa alicerçar os modos de vida.

IHU On-Line – Que especificidades têm o uso humano nas áreas úmidas para outros tipos de biomas?
Michèle Sato – Há várias diferenças entre estes mundos secos e úmidos, e os próprios locais chamados úmidos também vivem a época da secura. Há uma dinâmica ecológica diferenciada em cada região, demarcada pelas espécies vegetais e animais, pelo clima ou por diversos outros fatores de distinção entre uma área e outra. Por isso, é de vital importância que as políticas públicas consigam enxergar a regionalidade de cada território, ao invés de homogeneizar todas como se fossem iguais. O conceito de áreas úmidas surgiu oficialmente em 1971, durante a Convenção de Ramsar , cidade do Irã que sediou o evento para o debate internacional das áreas úmidas. Há uma comissão internacional de Ramsar com os principais especialistas mundiais, e este ano foi criado um braço chamado “Cultura”, que dá pistas notáveis de como é importante considerar o humano nos processos de proteção ambiental. Esta rede cultural veio da necessidade de alertar os cientistas de que não é mais possível fazer estudos fragmentados das áreas úmidas sem considerar as relações humanas que delas fazem parte.

IHU On-Line – Quais os principais riscos da interferência humana nas áreas alagadas?
Michèle Sato – As áreas úmidas são frequentemente consideradas zonas de transição de um ecossistema para outro. Os cientistas têm chamado estas áreas de “ecótono” , que é bastante rico do ponto de vista ecológico, já que agrega elementos de duas paisagens, na mistura das vidas de um ecossistema e outro. Simultaneamente, é também o local de maior estresse energético, gerando competições, adaptações e processos de resiliência, isto é, de que maneira uma espécie se adapta ao território. São áreas ricas em biodiversidade aquática, na exuberância da paisagem que a água traz. Mas há várias degradações que ameaçam estas áreas: o uso exagerado de agrotóxico, por exemplo, pode contaminar os lençóis freáticos ou nascentes de água, pondo em risco não apenas o local, mas toda a complexidade global, uma vez que o ambiente não enxerga a fronteira cartográfica inventada pelos humanos. A interconectividade do ambiente é ameaçada com ações humanas que provocam a violência socioambiental, já que um impacto ambiental traz consequências sociais drásticas. Assim, é importante ressaltar que toda vez que temos um impacto ambiental, as consequências recaem sobre os grupos sociais vulneráveis, sem condições de defesa.

IHU On-Line – Qual o papel da educação ambiental neste contexto? Em que medida ela se torna um fator fundamental para a preservação ambiental?
Michèle Sato – Em primeiro lugar, potencializar a educação ambiental em seu caráter político, não meramente comportamental ou intuitivo. Claro que são dimensões interessantes, mas ousar processos que promovam mudanças é mais emergencial. Neste contexto, trazer o diálogo socioambiental, aliando cultura e natureza neste campo pedagógico capaz de fazer emergir a educação como mola propulsora das transformações socioambientais. Retirar o caráter ingênuo da educação implica dizer que ela pode debater a problemática dos resíduos sólidos inscrita numa dimensão do consumo, dos modelos de desenvolvimento e das orientações econômicas que geram os resíduos. Neste contexto, será impossível promover a educação ambiental apenas por meio da coleta seletiva ou de oficinas de reutilização do lixo, mas, principalmente, haverá um debate sobre as injustiças e desigualdades que promovem a geração de resíduos.

IHU On-Line – Considerando uma perspectiva mais focada nas áreas úmidas, de que maneira a educação pode ajudar no convívio mais harmônico das comunidades próximas às áreas alagadas com a biodiversidade local?
Michèle Sato – Especificamente no caso das águas, as populações ribeirinhas sabem conviver bem com a natureza. Historicamente sempre houve um equilíbrio entre as ações humanas destes grupos sociais mais vulneráveis e a natureza. O que desequilibra e traz danos ambientais não são as populações, senão o capital disfarçado de sustentabilidade: o agronegócio, a usina hidrelétrica, a indústria madeireira ou outro setor mercadológico que promove o trabalho escravo e prejudica o ambiente. A educação ambiental, neste contexto, tem o papel dos ensinamentos de Paulo Freire : aprendemos a mapear os opressores e lutamos contra as forças negativas à nossa libertação. Não promovemos uma educação só de ensinamentos, senão de diálogos. Não mais uma educação ambiental ingênua de abraçar árvores, mas também aquela política, de ter coragem de assumir a não neutralidade educativa e aprender coletivamente contra quem fazemos, pensamos e sentimos a educação ambiental.

IHU On-Line – Em que medida os danos causados ao meio ambiente surgem do desconhecimento de que tais práticas são prejudiciais? Como avançar nesse processo?
Michèle Sato – De minha experiência pessoal, muito se conhece sobre danos e prejuízos ambientais. O que não se conhece ainda é como frear a ganância de lucrar, minimizando os lucros para maximizar os bens socioambientais. Creio que novas alternativas econômicas podem ser possíveis, como a economia solidária, popular ou alternativa a este capitalismo tardio que avassala a natureza, a cultura e a dignidade humana. É preciso debater mais a noção de “des-envolvimento” e toda noção de progresso que realmente deixa de envolver a sociedade e o ambiente, focando apenas na economia. O desenvolvimento sustentável, ainda que ostente uma face ambiental, continua sendo o velho capitalismo, agora maquiado de um novo chavão que é repetido sem reflexão crítica, como se fosse a única verdade das diversas identidades pulsantes no mundo. Para além do desenvolvimento, estamos precisando de mais envolvimento.

IHU On-Line – Quais são os desafios postos à educação ambiental? Como interagem os saberes acadêmicos e das comunidades de regiões alagadas?
Michèle Sato – Na Universidade Federal de Mato Grosso, o Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Arte  vem aliando pesquisa acadêmica com militância política, abraçando a produção científica nas malhas da educação popular. Tornamo-nos sujeitos de pesquisa junto com os comunitários, dialogando saberes, tecendo redes de debates e buscando, junto com eles, construir as políticas públicas que possam garantir dignidade de vida. Temos promovido formação, fórum de debate e produzido alguns materiais educativos que levam a assinatura dos comunitários junto conosco. Longe de ser prescritivo e fechado como as cartilhas, produzimos materiais no substrato da sabedoria deles, aliando escola e comunidade. São aprendizagens coletivas emanadas de muitos diálogos éticos entre os mundos acadêmicos e populares.

IHU On-Line – De que maneira a questão da educação ambiental, especificamente no que se refere à questão das áreas úmidas, pode se tornar uma pauta pública de destaque na agenda nacional? Por que ela deveria ser debatida amplamente?
Michèle Sato – Há várias maneiras de se compreender o que seja educação ambiental. O que percebo é a magnitude política dos diálogos de saberes que vazam do controle das ciências e incidem no conhecimento que as comunidades possuem sobre o mundo. Nesta envergadura, a educação ambiental deixa de ser uma prática ingênua e reveste-se de uma dimensão transformadora. Reinventa a paixão, faz a transgressão contra os sistemas de regras rígidas e tenta promover a justiça socioambiental. Considera o ambiente e a sociedade humana entrelaçados, sem hierarquizar um polo. Rompendo com este dilema do antropocentrismo ou do biocentrismo, cria uma horizontalidade de potencial de vida, num ciclo permanente de aprendizagens.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Michèle Sato – Na primeira vez que fui ao Pantanal típico de áreas alagadas, atravessei o local com barco, num território úmido de barro, água e esbanjamento líquido que inundava não apenas meus pés, mas também a alma. Junto com cinco homens do Pantanal de São Pedro de Joselândia, fomos observar a feitura de uma canoa, desde a escolha da árvore até a feitura final. Manoel de Barros  jorrava em suas palavras a imensidão da água daquele lugar. Descobrimos, assim, que a canoa não seria meramente um objeto de mobilidade, mas também da arte, na legítima expressão identitária da cultura pantaneira. Alguns meses se seguiram e, no novo reencontro do local, os corixos  que ali serviam de impulso das canoas estavam totalmente secos, transformados em ruas empoeiradas, e outros meios de transporte esparramavam-se na comunidade. Em cada casa visitada, um santuário católico se misturava no labirinto cotidiano de uma gente sofrida que carece de políticas públicas mais fortalecidas, mas que jamais perde sua fé na vida. Entre os seres encantados que habitam as águas e os sonhos da educação ambiental, há muito para se dialogar saberes, ensinando e aprendendo juntamente com as comunidades na travessia da educação popular. É inútil insistir somente nas ciências. A poesia emanada daquele lugar é um convite para se pensar, fazer e, sobretudo, sentir a vida transbordante do Pantanal.

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