Três poemas sobre o vírus, de Rafael Lovisi Prado
Em nosso post de hoje de Pandemia, Cultura e Sociedade – uma parceria do Blog da BVPS com a revista Sociologia & Antropologia (PPGSA/UFRJ) – Rafael Lovisi Prado contribui com três poemas inéditos de uma série sobre o vírus, seguidos de uma pequena nota crítica assinada pelo nosso editor da coluna Interpretações do Brasil e Poesia, Lucas van Hombeeck.
Uma boa leitura!
Marina Abramović
receituário de acontecimentos
receituário de acontecimentos
quando se instala um estado
de suspensão, saudável é atravessar a
greta entre os corpos e arriscar segurar
teso o arco letal da tensão
de suspensão, saudável é atravessar a
greta entre os corpos e arriscar segurar
teso o arco letal da tensão
salutar também deitar os ossos sobre
o calor das velas e sentir às costas o
o risco inflamando – pentear os cabelos
(antes atados, aos poucos no chão) até
que a beleza se dilua diante do espelho e
e acabe em experimentação
o calor das velas e sentir às costas o
o risco inflamando – pentear os cabelos
(antes atados, aos poucos no chão) até
que a beleza se dilua diante do espelho e
e acabe em experimentação
saúde assim seria percorrer de ponta
a ponta as muralhas da China, rito
dos amantes que após anos
sentados em companhia
preparam caminhando
a chegada
da solidão
a ponta as muralhas da China, rito
dos amantes que após anos
sentados em companhia
preparam caminhando
a chegada
da solidão
René Magritte
pintar o lado de lá
pintar o lado de lá
dentro da habitação os objetos
passaram a ter outras proporções
tanto pente pincel taça quanto céu
que no quarto refletido tornou as
paredes nuvens pairando num
pélago invertido
passaram a ter outras proporções
tanto pente pincel taça quanto céu
que no quarto refletido tornou as
paredes nuvens pairando num
pélago invertido
naquela clausura com indefinida
abertura via a si mesmo à beira d’água
mas parado na areia, pernas de homem
cabeça de peixe, respirar nem mergulhar
podia, caso um beijo desse vinha-lhe à
boca sangue da memória
dos findos dias
abertura via a si mesmo à beira d’água
mas parado na areia, pernas de homem
cabeça de peixe, respirar nem mergulhar
podia, caso um beijo desse vinha-lhe à
boca sangue da memória
dos findos dias
foi então que abriu o cavalete e fez do
mar sua extensão, maneira que encontrou
de se dar porvir – ovo pintado prestes a
eclodir – pois pensar no passado a esta
altura seria como olhar a tela fria
e ver projetada somente
a própria nuca
mar sua extensão, maneira que encontrou
de se dar porvir – ovo pintado prestes a
eclodir – pois pensar no passado a esta
altura seria como olhar a tela fria
e ver projetada somente
a própria nuca
Hélio Oiticica
gimme shelter
gimme shelter
não se está só
na casa-mundo, abrigo
da beira, aberto, que como capa
multimodal veste o corpo
multivalente ambiente, tenda
multicolor vivenda onde se pisa
areais, pedras, passa-se via
penetráveis fendas, lança-se em
lentos labirintos, diz-se aos
quantos cantos a todos
os ventos: a margem não é
maldição, mas prova de que
a coisa nova se funda, afunda
o fundado.
pura montagem
premonição profunda
do advento
na casa-mundo, abrigo
da beira, aberto, que como capa
multimodal veste o corpo
multivalente ambiente, tenda
multicolor vivenda onde se pisa
areais, pedras, passa-se via
penetráveis fendas, lança-se em
lentos labirintos, diz-se aos
quantos cantos a todos
os ventos: a margem não é
maldição, mas prova de que
a coisa nova se funda, afunda
o fundado.
pura montagem
premonição profunda
do advento
Rafael Lovisi Prado é poeta, pesquisador e professor da área de Literatura Comparada e Teoria da Literatura.
Estreando a contribuição em verso para a coluna Pandemia, Cultura e Sociedade, Rafael Lovisi Prado envia para o blog da BVPS três poemas de uma série sobre o vírus: Marina Abramović/receiturário de acontecimentos, René Magritte/pintar o lado de lá e Hélio Oiticica/gimme shelter. Neles, o estar-só nunca é sozinho, da mesma forma que a individualidade, como aprendemos com a sociologia, é uma condição social: no primeiro poema há uma cuidadosa preparação da solidão pelos amantes, enquanto no segundo os objetos mostram sua agência e delírio e, no último, os primeiros versos dizem de partida que “não se está só/na casa-mundo, abrigo”. É que, neles, a poesia convive com os trabalhos de não-poetas (uma performer, um pintor, e um artista bastante difícil de classificar) propondo a convivência também entre esses artistas por meio de seus trabalhos, em diferentes modulações de um problema que grande parte do mundo enfrenta hoje: o isolamento e a precariedade das formas de subjetivação da vida cotidiana e danificada. Se quisermos sair da pandemia inventando novas relações, é bom começarmos a imaginá-las. Agradecemos ao Rafael por compartilhar conosco sua contribuição para a tarefa.
_________
[i] Doutorando em Sociologia no PPGSA/IFCS-UFRJ.
A imagem que ilustra o post é:Giorgio De Chirico, Orfeu trovador cansado, 1970. Óleo sobre tela. 149 x 147 cm. Fondazione Giorgio e Isa de Chirico, Roma.
* Os textos publicados pelos colaboradores não refletem as posições da BVPS.
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