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Como os poetas terminam – literatura e indigência no Brasil
Orides Fontela, Horacio Quiroga e Claudio Willer: três grandes artistas que enfrentaram penúrias (Arte: Andreia Freire/Revista CULT)
Em 1928, no auge de sua popularidade, o escritor uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937), num artigo chamado “A profissão literária”, fazia um balanço de sua carreira, pensando sobretudo na remuneração dos autores. Ao fechar sua dolorosa contabilidade, concluiu: “Durante os 26 anos que vão de 1901 até hoje, ganhei com minha profissão 12.400 pesos. Este montante em tal período de tempo equivale a um salário de 39,70 pesos por mês. (…) Se eu tivesse que ganhar a vida exclusivamente com isso, teria morrido após sete dias de me iniciar em minha vocação, com as entranhas roídas”.
Em outro artigo do mesmo ano, Quiroga, numa série de biografias breves chamada Heroísmos, referia-se a Edgar Allan Poe (1809-1849), cujas cartas revelam que ganhava ainda menos por seus contos. Em maio de 1844, à editora da revista The Opal, Poe dizia: “O preço que a senhora me indica – 50 centavos por página – me parece suficientemente bom”. Estranho pensar que o autor de “O gato preto” e “O corvo”, apesar de gozar de reconhecimento público, vivia em condição de semi-indigência e, cinco anos depois, morreria de delirium tremens.
O próprio Horacio Quiroga, apenas seis anos após tais artigos, começou a enfrentar reveses econômicos: um golpe militar no Uruguai levou-o a ser exonerado de seu cargo de diplomata, sem tampouco conseguir se aposentar. Já sem grande prestígio na imprensa local, acabou passando os anos finais com dificuldades financeiras, vindo a morrer após cinco meses internado no Hospital de Clínicas de Buenos Aires. Ao descobrir que padecia de um câncer incurável, suicidou-se.
Nosso desejo de que esses destinos literários fossem mera memória de tempos idos se vê desmentido por recentes histórias nacionais. Descontados altos e baixos, nas últimas décadas, no Brasil, a situação de quem se atreve viver do que escreve não é muito melhor: Orides Fontela (1940-1998), Hilda Hilst (1930-2004), Roberto Piva (1937-2010) – os três grandes poetas viveram penúrias em seus anos finais.
Na Folha de S. Paulo, em 1996, uma matéria de Elvis Bonassa descrevia o cotidiano de Fontela, às vésperas do lançar seu livro Teia: “Orides Fontela, 55, ganha apenas uma aposentadoria de R$ 423. Mora no prédio da Casa do Estudante, na Av. São João, acolhida por uma amiga após deixar, por falta de dinheiro, um apartamento alugado. Orides Fontela é uma das mais respeitadas poetisas brasileiras”. No mesmo jornal, em 2005, Julián Fuks assim descrevia Piva: “Aqueles leitores da década de 1960 (…) talvez se entristecessem ao ver Piva trancafiado em seu apartamento na Santa Cecília, já descrente da vida que pulsa nas ruas. Das ruas, segundo denunciam suas janelas fechadas e empoeiradas, só lhe alcança o som das buzinas”.
Em tempos bem recentes, no início de 2018, veio a público um alerta da situação financeira delicada de outro grande da cena nacional: Claudio Willer. Após ter sido uma das figuras-chave da geração dos Novíssimos; ter tido verbete a ele dedicado no Dictionnaire général du Surréalisme et de ses environs, de Adam & Passeron (1982); ter traduzido Láutreamont, Artaud, Ginsberg e Kerouac no Brasil; ter escrito obras de referência sobre gnose e gnosticismo na literatura ocidental e sobre a beat generation; ter influenciado poetas com sua poesia e suas oficinas literárias; após ter feito tudo isso, Willer não conseguia mais pagar o aluguel de seu apartamento, onde vivia com a companheira e artista plástica Maninha Cavalcante.
Ora, se ter criado a literatura policial e ter escrito O Corvo (1845) e Filosofia da Composição (1846) não salvou Poe da indigência; por que obras como Anotações para um apocalipse (1964) ou Volta (1996) protegeriam Willer de ser acossado pela carestia?
É certo que a crise econômica que o Brasil passou a enfrentar ao menos desde 2013 tem um papel nisso. Mas não apenas ela: cabe suspendermos o texto para fazer um minuto de silêncio – e reflexão – pelo Sabático do Rinaldo Gama; o Prosa & Verso da Mànya Millen; o Guia de Livros, Discos e Filmes do Manuel da Costa Pinto; o Rádio ao Vivo de Menegatti, Oliveira Andrade e Cris Santos; o Pensar do João Paulo Cunha; o Ideias & Livros do Álvaro da Costa e Silva; a Bravo!… Enfim, a crise. Menos livros, menos livrarias, menos ideias circulando, menos oficinas literárias, menos resenhas a escrever e a ler. Orçamentos reduzidos nos SESCs, nas universidades, menos apoio nas agências de fomento. A literatura e as artes saindo com velocidade do centro da cena.
Num contexto como o atual – anticultural, obscurantista, truculento – é certo que floresce a cultura de resistência, e incontáveis são os projetos de gente vigorosa que afronta a tempestade – livros, saraus, slams, editoras de resistência, portais, revistas, críticos independentes – coletivos e pessoas que têm força para, à margem, criar e fazer circular arte. Resta, entretanto, a pergunta incômoda: e quem, como Willer, ao 78 anos, já militou pela poesia não apenas na escrita, mas também em eventos-chave como na realização da Feira de Poesia e Arte, no Theatro Municipal, num Brasil sob ditadura, em novembro de 1976? E que depois atuou, na UBE, na FUNARTE e em incontáveis outras instituições? O que faz o poeta septuagenário quando o ambiente se torna inóspito? Continua como mascate lírico, oferecendo oficinas, cursos, palestras, conferências, para além dos limites físicos, em troca de uns pro labore que nunca bastam para pagar alugueis, remédios e a mera subsistência? Continua escrevendo livros para a posteridade?
Há um momento da vida humana – mesmo a dos poetas – no qual o corpo começa a cobrar seus preços, e o escritor precisa fazer frente à intempérie. Caibam três notas: (1) que, no Brasil, quem foi autônomo ao longo da vida, na velhice tem seus rendimentos de aposentadoria não superiores a um salário mínimo: menos de mil reais; (2) que direitos autorais de poetas rendem, quando muito, algumas dezenas de moedas; (3) que no Brasil não há pensões a artistas que tenham prestado serviços relevantes à cultura, como ocorre em países como Portugal e na Itália, por exemplo. O que fazer?
No início de 2018, como disse, leitores, artistas, intelectuais e amigos de Claudio Willer lançaram a campanha de apoio ao poeta. O objetivo era simples: levantar dinheiro para que ele pudesse pagar as contas atrasadas e apoiar o tratamento de sua companheira. Contas foram pagas e ele foi viver num apartamento, que há duas semanas teve de desocupar. Aos 78 anos, vivendo provisoriamente num hotel, já se sabe que a vida financeira não irá melhorar, que não há guinadas ou golpes de sorte. É preciso contar com uma rede de apoio perene, com ingressos mensais, que não obriguem a forçar uma coluna vertebral que já sustentou poesia, reflexão e devaneio por todo o território brasileiro.
Como não temos no horizonte deste país a criação de uma lei de pensões a artistas veteranos – os que combateram por décadas pela dimensão vivificadora da arte para fazer da criatura humana um ser menos abjeto – então o artigo se transforma em apelo: por que não apoiar o poeta vivo – Claudio Willer –, por que não apoiá-lo como a um ser que se estima? Se o poeta se faz à margem das instituições, para nos fazer ver lados outros das coisas, porque não sustentá-los com delicadeza no ar, no instante duro da queda?
WILSON ALVES-BEZERRA é escritor, tradutor, crítico literário e professor de literatura. Leciona no Departamento de Letras da UFSCar e já traduziu autores latino-americanos como Horacio Quiroga e Luis Gusmán.