Thursday, 21 June 2012

Antes do dilúvio

OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA
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RIO+20 => ENTREVISTA / MIKE DAVIS

Antes do dilúvio

Por Juliana Sayuri e Ivan Marsiglia em 19/06/2012 na edição 699
Reproduzido do suplemento “Aliás” do Estado de S.Paulo, 17/6/2012
   
Florescem cenários apocalípticos nas críticas do urbanista norte-americano Mike Davis, para quem o futuro está sendo gestado em megalópoles convulsionadas. E será um futuro noir, solapado por catástrofes superlativas, guerras e pandemias de toda sorte. “A Rio+20 tem tanta chance de salvar o mundo como uma convenção de entusiastas do esperanto”, ironiza o também historiador e fundador da New Left Review.
Autor de Cidades MortasEcologia do Medo e Holocaustos Coloniais (Editora Record), Apologia dos Bárbaros,Cidade de Quartzo e Planeta Favela (Boitempo Editorial), Michael Ryan Davis cresceu no deserto californiano de El Cajon, foi aprendiz de açougueiro, caminhoneiro e militante estudantil. Atualmente, leciona na Universidade da Califórnia, em Riverside, de onde concedeu esta entrevista exclusiva ao “Aliás”.
Qual é sua expectativa para a Rio+20?
Mike Davis – A Conferência tem tanta chance de salvar o mundo como uma convenção de entusiastas do esperanto ou um encontro de seguidores de Zoroastro. Há sérios pontos para discutir na Rio+20, mas a épica batalha sobre a mudança climática e o desenvolvimento sustentável foi irremediavelmente perdida na esfera da política internacional. Para os futuros historiadores não será difícil aquinhoar a responsabilidade. Mesmo que todos os países ricos compartilhem alguma culpa, alguém apertou o gatilho. O Protocolo de Kyoto foi assassinado no berço pelo Texas – isto é, pelo Partido Republicano norte-americano e os bilionários do petróleo de Houston que o financiam. Os democratas, por sua vez, lamentaram brevemente a morte de Kyoto e, em seguida, discretamente enterraram o aquecimento global como uma questão de campanha. A ausência do presidente Barack Obama no Rio é um sinal de que a mudança climática – questão de vida e morte para grande parte da humanidade – tornou-se órfã.
Anfitrião do encontro, o Brasil tomou posições ambivalentes e criticadas em questões como o novo Código Florestal e a usina de Belo Monte. Como o sr. as analisa?
M.D. – De perto, o sistema político do Brasil parece muito disfuncional. De longe, porém, lembra o New Deal americano: a bem-sucedida manipulação de mobilizações populares (sobre questões como a pobreza, a terra, os direitos dos trabalhadores e a Amazônia) para forçar o capitalismo brasileiro a se modernizar e competir na pista rápida dos novos países industrializados. As conquistas da era PT são incontestáveis, como as políticas de regulamentação ambiental, que mesmo inconsistentes, abrandaram as formas mais destrutivas de explorar o paraíso de vocês. A tripulação da Estação Espacial Internacional não mais orbita sobre uma Amazônia em chamas. Mas alguns dos limites do novo modelo brasileiro parecem óbvios. O projeto verde inevitavelmente colide com a realidade de uma grande economia que continua dependente das exportações de produtos primários.
Como está a questão verde hoje, após quase um século de movimento ambiental?
M.D. – Como estamos à beira de uma recessão mundial sincronizada, é difícil até para os Chicago boys (grupo de intelectuais formados na Universidade de Chicago, pioneiros do pensamento neoliberal) argumentarem que as gigantescas corporações e bancos tenham interesse ou poder para criar empregos para nossos filhos, garantir segurança alimentar para os 3 bilhões ainda por nascer nos próximos 40 anos ou adaptar cidades e campos para os desafios da sobrevivência em um clima mais extremo. Empregos, alimentos e meio ambiente são fatores intrinsecamente unidos – mas o movimento verde, com poucas honrosas exceções, não conseguiu ver essa interligação. Assim, muitos pobres ainda consideram o ambientalismo como um luxo que eles não podem pagar. Em países como os EUA, a degeneração da política ambiental é terrível. Os ativistas verdes de outrora agora são lobistas institucionais em Washington, dispostos a apertar a mão do diabo, mesmo a da indústria do petróleo. Enquanto isso, o breve flerte do presidente Obama com o “crescimento verde” – a promessa de centenas de milhares de bons empregos ao redor da energia renovável – tornou-se uma miragem cruel. O único notável boom do trabalho está na produção de combustíveis fósseis: os campos de petróleo de Dakota do Sul e as instalações para extração de gás na Pensilvânia. Acredito que cada questão ambiental deva ser enquadrada em termos de criação de empregos e futuro para a juventude. O mundo precisa imensamente de reparo, e uma humanidade desacorrentada dos balanços corporativos deveria urgentemente construir uma arca antes de o dilúvio chegar. O que realmente precisamos são centenas de milhões de empregos low tech: legiões de jardineiros, pedreiros, professores. Um programa de trabalho global. Diante da austeridade crescente, tal proposta parece politicamente absurda, mas precisamos de partidos que defendam políticas necessárias – e não só realistas. Não tenho certeza se os atuais partidos verdes se encaixam nessa job description.
Nada melhorou desde a Eco-92?
M.D. – Centenas de livros foram escritos sobre bons experimentos verdes em escala local. As cidades brasileiras, em particular, ganharam reconhecimento mundial por suas inovações. Mas olhe ao redor. Comparadas às deduções para as guerras do Pentágono e da indústria de carvão na China, para não falar na crescente miséria urbana na África e da deterioração das cidades ex-soviéticas, as contribuições verdes marcam um progresso insignificante. De fato, se a crise econômica de 2008 foi apenas um prelúdio para uma depressão abrangente nos anos seguintes, estamos construindo castelos de areia. Há muita ousadia na concepção de soluções técnicas e pouca na política. Fico feliz que Berkeley seja bike-friendly e Julia Roberts viva em uma casa de carbono zero, mas o que é mais importante para nosso ecofuturo: maravilhosos oásis verdes em cidades ricas ou banheiros e salários mínimos em cidades pobres? Aí é onde um Brasil progressista poderia ser a vanguarda.
Então a crise financeira de 2008 selou o destino da causa ambiental?
M.D. – No caso dos EUA, os resultados foram perversos. Inicialmente, os preços astronômicos do petróleo e a necessidade de um estímulo keynesiano parecia apontar para um boom na energia renovável e tecnologias ambientalmente eficientes. Mas foi o combustível fóssil que se renovou com o boom de tar sands (a mais suja fonte de petróleo) de Alberta e os depósitos de gás nas rochas de Pensilvânia. Ao mesmo tempo, o maior empreendimento da administração de Obama em parcerias público-privadas para a indústria de energia alternativa, uma concessão de US$ 500 milhões para energia solar, foi um fiasco por causa da competição chinesa. A depressão americana deu ao lobby “negador” – a campanha de relações públicas com falsos experts para negar a ideia de aquecimento global – e ao lobby antiambientalista, nova vida no Partido Republicano. Romney é um “cético” renascido na mudança climática enquanto alguns de seus oponentes, como Michelle Bachmann, de Minnesota, são oponentes diretos da ciência moderna per se. Assim, a opinião pública dos EUA mudou drasticamente em direção ao ceticismo sobre o aquecimento global.
Ambientalistas defendem a redução dos padrões de consumo para salvar o planeta. Como uma transformação dessas no comportamento humano seria possível?
M.D. – Padrões de consumo doméstico obviamente não significam qualidade de vida, uma vez que muitas de nossas mais importantes necessidades só podem ser preenchidas em comunidade com os outros. No entanto, parte dos ambientalistas tem pouquíssimo compromisso com a justiça social. Proporcionar uma vida decente para as massas e preservar a vida animal são vistos como objetivos quase excludentes. Na verdade, acredito que a única forma de salvar o planeta é fazer todo mundo rico. Rico no sentido da desfrutar de maneira completa e equânime de um espaço público luxuoso e de utopias digitais comuns. A melhor maneira de equacionar uma democracia de alta qualidade de vida com uma biosfera sustentável é investindo no espaço público e no consumo comunitário. Para salvar o meio ambiente precisamos salvar a própria humanidade, e salvá-la é criar uma distribuição equânime de bens públicos. Fazendo isso, vamos criar centenas de milhões de empregos. As verdadeiras qualidades urbanas das cidades – construídas com estrutura de transporte público eficaz e interação entre florestas e diversidades sociais e culturais – são a forma mais eficiente de uso da energia e do espaço. Como o grande urbanista utópico Patrick Gedders apontava já no século 19, o lixo produzido por uma cidade pode tanto se transformar em toxina mortal como parte do ciclo ecológico para sustentação de jardins e cinturões verdes. Para repensar esse esquecido, porém essencial, diálogo sobre uma visão socialista e moderna do urbanismo sustentável, discussão que floresceu entre 1880 e 1920 até ser brutalmente assassinada por Hitler e Stalin, eu preferiria pensar no Brasil. Nenhum outro país no mundo tem semelhante expertise para a vida urbana nem tanto potencial, apesar de toda a desigualdade, para abrir as portas do paraíso.
Seu livro Evil Paradisesfala de 'utopias' bem diversas dessa que acaba de descrever.
M.D. – Vivemos uma separação sem precedentes entre muito ricos e o restante da humanidade. Seja encastelados em arranha-céus militarizados, metidos em murados subúrbios de luxo ou em paraísos artificiais como Dubai, os 1% mais ricos desistiram de qualquer pretensão de existência compartilhada com o resto de nós. Mas no fim das contas a segurança desses “off worlds”, como são chamados no filme Bladerunner, é puramente ilusória. Vírus e bactérias encubadas nas imundas e superlotadas metrópoles viajam de primeira classe nos aviões...
A globalização reduziu as possibilidades de ação de parlamentos e chefes de Estado na administração da economia mundial?
M.D. – A crise europeia transformou-se em uma autópsia pública da globalização em sua forma mais radical. Ela mostrou a dificuldade de se superar desequilíbrios estruturais entre grandes economias – mesmo com as mais ousadas tentativas de regulação supranacional da crise. Doutores do FMI, da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu (BCE) alertaram que a prosperidade europeia só pode ser salva por uma integração fiscal e política drástica, pela criação de um genuíno “Estados Unidos da Europa”. Mas a atual vantagem comparativa econômica alemã em produtividade e custos do trabalho inviabilizam isso. De um lado, os contribuintes alemães não aceitam sustentar o bem-estar social de gregos e espanhóis. De outro, seria uma humilhação e rendição das soberanias nacionais em troca de benefícios hipotéticos após longos ajustes de austeridade. Os chamados fundos de resgate oferecidos são basicamente um programa para evitar prejuízos aos bancos do norte. Na Grécia, por exemplo, os empréstimos do BCE foram basicamente usados para transferir o risco de bancos estrangeiros para a Grécia e contribuintes europeus. Na Irlanda e na Espanha, transformaram perdas bancárias em dívida pública. Uma vez que os grandes bancos têm sempre prioridade nos botes salva-vidas – enquanto mulheres e crianças ficam por último –, austeridade e dívida vão continuar em uma espiral fora de controle. Essa política está condenando os EUA e a Europa a uma estagnação que já faz lembrar a “década perdida” da América Latina nos anos 1980. Poderão a China e os outros Brics continuarem a crescer em meio a essa depressão? Pergunte aos bancos chineses...
Seus livros são conhecidos pela visão pessimista do futuro. O britânico James Lovelock recentemente reviu suas piores previsões sobre o aquecimento global. Quais são os riscos reais que a humanidade enfrenta?
M.D. – Os seres humanos obviamente não podem destruir o ambiente per se, apenas os recursos naturais dos quais a civilização depende. A Terra sempre resistirá, embora por um longo tempo com um drasticamente simplificado bioma. A atual taxa de espécies em extinção equivale ao impacto de um asteroide. A ciência climática pode prover contornos brutos dos impactos do aquecimento na agricultura. Parece claro, por exemplo, que uma enorme faixa do norte dos subtrópicos, incluindo o México e o Caribe, a costa do Mediterrâneo, o Oriente Médio e, acima de todos, o Indus Valley (o maior sistema de irrigação do mundo, com 100 milhões de pessoas) enfrentem um futuro de épica seca. Mas não há tecnologia que possa estimar o impacto social das crescentes perdas na complexidade ecológica através da extinção e da invasão de espécies daninhas. Ninguém imagina o que estamos desencadeando no nível microscópico ao reduzir a diversidade ecológica ou ao criar superconcentrações de uma espécie (os seres humanos nas cidades, por exemplo) em fétidas condições. No livro Cidades Mortas, discuto a assustadora pesquisa conduzida após a 2ª Guerra por botânicos nas cidades bombardeadas da Europa. A expectativa científica era o rápido retorno aos ecossistemas complexos. Ao contrário, os pesquisadores ficaram perplexos ao descobrir que um punhado de espécies daninhas, algumas exóticas, estabeleceram uma imediata ditadura. Eles denominaram essa inesperada ecologia de plantas piratas uma “segunda natureza”, um sinistro ecossistema florescendo em solo bombardeado e envenenado. Hoje, com o sangramento dos combustíveis fosseis, a simplificação das colheitas e o derramamento de tóxicos, estamos acelerando a criação de uma segunda natureza em escala global. Se ainda haverá espaço para nossa espécie nessa nova ecologia é, claro, a questão final.
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[Juliana Sayuri e Ivan Marsiglia, do Estado de S.Paulo]

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