templo cultural delfos
http://www.elfikurten.com.br/2015/05/mia-couto-poemas.html
“Sou escritor e cientista. Vejo as duas actividades, a escrita e a ciência, como sendo vizinhas e complementares. A ciência vive da inquietação, do desejo de conhecer para além dos limites. A escrita é uma falsa quietude, a capacidade de sentir sem limites. Ambas resultam da recusa das fronteiras, ambas são um passo sonhado para lá do horizonte. A Biologia para mim não é apenas uma disciplina científica mas uma história de encantar, a história da mais antiga epopeia que é a Vida. É isso que eu peço à Ciência: que me faça apaixonar. É o mesmo que eu peço à literatura.”
“[...] a escrita não é uma técnica e não se constrói um poema ou um conto como se faz uma operação aritmética. A escrita exige sempre a poesia. E a poesia é um outro modo de pensar que está para além da lógica que a escola e o mundo moderno nos ensinam. Sem a arrogância de as tentarmos entender. Apenas com a ilusória tentativa de nos tornarmos irmãos do universo.”
“O segredo do escritor é anterior à escrita. Está na vida, na forma como ele está disponível a deixar-se tomar pelos pequenos detalhes do cotidiano.”
"Na ciência (como em outras actividades) o mais importante não é o que chamamos científico. É o lado humano. Criou-se a ideia de que o cientista é isento de erro, uma espécie de ser privilegiado que apenas trilha pelos atalhos do rigor e da exactidão. Essa aversão pelo erro é o mais grave dos erros. È tão vital errarmos como acertarmos. Devemos afastar o medo de errar. Devemos o gosto por experimentar, mesmo cometendo falhas. A natureza foi evoluindo graças ao erro básico que é a mutação. Se os genes nunca falhassem não haveria a diversidade necessária para a continuidade da Vida. Os processos vitais exigem, ao mesmo tempo, o rigor e o erro. Não podemos ter medo de não saber. O que devemos recear é o não termos inquietação para passarmos a saber.”
“O que pode suscitar uma pequena história é quanto por trás do cientista reside um homem, com suas ignorâncias, suas incertezas e suas crenças tantas vezes muito pouco científicas.”
“Só se escreve com intensidade se vivermos intensamente. Não se trata apenas de viver sentimentos mas de ser vivido por sentimentos.”
“Há quem acredite que a ciência é um instrumento para governarmos o mundo. Mas eu periferia ver no conhecimento científico um meio para alcançarmos não domínios mas harmonias. Criarmos linguagens de partilhas com os outros, incluindo os seres que acreditamos não terem linguagem. Entendermos e partilharmos a língua das árvores, os silenciosos códigos das pedras e dos astros.
Conhecermos não para sermos donos. Mas para sermos mais companheiros das criaturas vivas e não vivas com quem partilhamos este universo. Para escutarmos histórias que nos são, em todo momento, contadas por essas criaturas.”
- trechos do texto elaborado para crianças lusófonas integradas no programa interescolar "Ciência Viva", Julho de 2004, publicado em "Pensatempos" de Mia Couto. 2ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 2005, p. 45-49. Fonte: Mia Coutiando.
:: COUTO, Mia. Uma palavra de conselho e um conselho sem palavras. em “Ciência Viva”. Acesse o texto na íntegra no link. (acessado em 03.05.2015).
OBRA POÉTICA DE MIA COUTO
:: Raiz de orvalho. [Cadernos Tempo], Maputo/Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO), 1983.
POEMAS SELECIONADOS
A adiada enchente
Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.
Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.
Gravidez de fúrias e cegueiras,
os bichos perdendo o pé,
eu perdendo as palavras.
Simples espera
daquilo que não se conhece
e, quando se conhece,
não se sabe o nome
- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.
A casa
Sei dos filhos
pelo modo como ocupam a casa:
uns buscam os recantos,
outros existem à janela.
A uns satisfaz uma sombra,
a outros nem o mundo basta.
Uns batem com a porta,
outros hesitam como se não houvesse saída.
Raras vezes sou pai.
Sou sempre todos os meus filhos,
sou a mão indecisa no fecho,
sou a noite passada entre relógio e escuro.
Em mim ecoa a voz
que, à entrada, se anuncia: cheguei!
E eu sorrio, de resposta: chegou?
Mas se nunca ninguém partiu…
E tanto em mim
demoram as esperas
que me fui trocando por soalho
e me converti em sonolenta janela.
Agora, eu mesmo sou a casa,
casa infatigável casa
a que meus filhos
eternamente regressam.
- Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”. Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
A demora
Amei-te sem saberes
No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptível crescer
como carne da lua
nos nocturnos lábios entreabertos
E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar
No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada
Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio
- Mia Couto, em "Raiz de Orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
As ruas
No tempo
em que havia ruas,
ao fim da tarde
minha mãe nos convocava:
era a hora do regresso.
E a rua entrava
connosco em casa.
Tanto o Tempo
morava em nós
que dispensávamos futuro.
Recolhida em meu quarto,
a cidade adormecia
no mesmo embalo da nossa mãe.
À entrada da cama,
eu sacudia a areia dos sonhos
e despertava vidas além.
Entre casa e mundo
nenhuma porta cabia:
que fechadura encerra
os dois lados do infinito?
- Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”. Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
Autobiografia
Onde eu nasci
há mais terra que céu.
Tanto leito é uma bênção
para mortos e sonhadores.
E de tão pouco ser o céu
nasce o sol
em gretas nos nossos pés
e os corações se apertam
quando remoinhos de poeira
se elevam nos telhados.
As mães
espanam o teto
e poeiras de astros
cobrem o soalho.
De tão raso o firmamento,
a chuva tropeça nas copas
enquanto nuvens
se engravidam de rios.
Com tanta escassez de céu
não há encosto
nem para a mais minguante lua
e os meninos,
na ponta dos dedos,
ascendem estrelas.
Pois,
nessa terra
que é tanta para tão pouco céu,
calhou-me a mim ser ave.
Pequenas que são,
as minhas asas parecem-me enormes.
Envergando,
escondo-as dos olhares vizinhos.
Nas minhas costas
pesam
versos e plumas.
Voarei,
um dia,
sem saber
se é de terra ou de céu
a pegada do voo que sonhei.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Beber toda a ternura
Não ter morada
habitar
como um beijo
entre os lábios
fingir-se ausente
e suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Beijo
Não quero o primeiro beijo:
basta-me
o instante antes do beijo.
Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.
O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.
Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.
- Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”. Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
Confidência
Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça
Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem retorno
Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci
Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos
No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Despedida
Aves marinhas soltaram-se dos teus dedos
quando anunciaste a despedida
e eu que habitara lugares secretos
e me embriagara com os teus gestos
recolhi as palavras vagabundas
como a tempestade que engole os barcos
porque ama os pescadores
Impossível separarmo-nos
agora que gravaste o teu sabor
sobre o súbito
e infinito parto do tempo
Por isso te toco
no grão e na erva
e na poeira da luz clara
a minha mão
reconhece a tua face de sal
E quando o mundo suspira
exausto
e desfila entre mercados e ruas
eu escuto sempre a voz que é tua
e que dos lábios
se desprende e se recolhe
Ali onde se embriagam
os corpos dos amantes
o te ventre aceitou a gota inicial
e um novo habitante
enroscou-se no segredo da tua carne
Nesse lugar
encostámos os nossos lábios
à funda circulação do sangue
porque me amavas
eu acreditava ser todos os homens
comandar o sentido das coisas
afogar poentes
despertar séculos à frente
e desenterrar o céu
para com ele cobrir
os teus seios de neve
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Erro poético
Sou o açúcar
procurando a formiga.
Meu carreiro
não tem linha.
É um ponto, um planetário grão.
A minha natureza
é uma inacabada caligrafia:
apenas os erros me defendem.
O amor apenas
me rasura a alma.
Com a formiga
partilho alucinogénicos:
migas de paixão, migalhas de doçura.
- Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”. Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
(Escre)ver-me
nunca escrevi
sou
apenas um tradutor de silêncios
a vida
tatuou-me os olhos
janelas
em que me transcrevo e apago
sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar
- Mia Couto (fevereiro 1985). em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999, p. 60.
Errata
Quem é mortal, mente.
Mentirosos,
ainda mais,
os tais
imortais.
Sem culpa uns e outros.
O verbo morrer
é que é sujeito falso
e de duvidosa acção.
Mais verdadeiro seria
se não fosse verbo.
Ou se conjugasse apenas
em forma passiva: ser morrido.
Como eu,
mais que as vezes que nasci,
fui morrido por ti.
E, assim, findo
num engano de rio:
simulando que morre
mas sendo água eterna.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Espiral
No oculto do ventre,
o feto se explica como o Homem:
em si mesmo enrolado
para caber no que ainda vai ser.
Corpo ansiando ser barco,
água sonhando dormir,
colo em si mesmo encontrado.
Na espiral do feto,
o novelo do afecto
ensaia o seu primeiro infinito.
- Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”. Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
Frutos
A bondade da mangueira
não é o fruto.
É a sombra.
A térrea,
quotidiana,
abnegada sombra:
no inverso do suor colhida,
no avesso da mão guardada.
Há a estação dos frutos.
Ninguém celebra a estação das sombras.
Assim, o amor e a paixão:
um, fruto; outro, sombra.
A suave e cruel mordedura
do fruto em tua boca:
mais do que entrar em ti
eu quero ser tu.
O que em mim espanta:
não a obra do tempo
mas a viagem do Sol na seiva da árvore
A arte da mangueira
é a veste de sombra
embrulhando o seu ventre solar.
Para o homem
vale a polpa.
Para a terra
só a semente conta.
- Mia Couto, em "Tradutor de chuvas". Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
Idade
Mente o tempo:
a idade que tenho
só se mede por infinitos.
Pois eu não vivo por extenso.
Apenas fui a vida
em relampejo do incenso.
Quando me acendi
foi nas abreviaturas do imenso.
- Mia Couto, em “Vagas e lumes”. Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Lembrança alada
Em alguma vida fui ave.
Guardo memória
de paisagens espraiadas
e de escarpas em voo rasante.
E sinto em meus pés
o consolo de um pouso soberano
na mais alta copa da floresta.
Liga-me à terra
uma nuvem e seu desleixo de brancura.
Vivo a golpes
com coração de asa
e tombo como um relâmpago
faminto de terra.
Guardo a pluma
que resta dentro do peito
como um homem guarda o seu nome
no travesseiro do tempo.
Em alguma ave fui vida.
- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.
Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.
Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.
Trêmula, a haste
me pede
o adiar da noite.
Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.
Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.
Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?
- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.
Mudança de idade
Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores nocturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.
- Mia Couto, em "Tradutor de chuvas". Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
Números
Desiguais as contas:
para cada anjo, dois demónios.
Para um só Sol, quatro Luas.
Para a tua boca, todas as vidas.
Dar vida aos mortos
é obra para infinitos deuses.
Ressuscitar um vivo:
um só amor cumpre o milagre.
- Mia Couto, em "Tradutor de chuvas". Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
O habitante
(ao meu pai)
Se partiste, não sei.
Porque estás,
tanto quanto sempre estiveste.
Essa tua,
tão nossa, presença
enche de sombra a casa
como se criasse,
dentro de nós,
uma outra casa.
No silêncio distraído
de uma varanda
que foi o teu único castelo,
ecoam ainda os teus passos
feitos não para caminhar
mas para acariciar o chão.
Nessa varanda te sentas
nesse tão delicado modo de morrer
como se nos estivesse ensinando
um outro modo de viver.
Se o passo é tão celeste
a viagem não conta
senão pelo poema que nos veste.
Os lugares que buscaste
não têm geografia.
São vozes, são fontes,
rios sem vontade de mar,
tempo que escapa da eternidade.
Moras dentro,
sem deus nem adeus.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
O pouco pó que somos
Não calcas
apenas um pedaço de caminho.
A Terra inteira
está sempre debaixo dos teus pés.
O mesmo torrão que pisas
te irá pesar depois.
Se quiseres leve a eternidade
trata com leveza o chão.
Imaginas-te autor da viagem?
É o oposto:
a terra é que andou em ti.
E, sem queixa nem cansaço,
de mundo e gente
a Terra te acrescentou.
A estrada,
que acreditaste alheia e morta,
é o teu corpo
feito de pedra e sonho.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
O que direi
Direi que nasci
se fores água
em minha boca desaguada.
Direi que cheguei
se o teu peito
em mim abrir o seu leito.
O rio se espraia
para se perder do chão,
e eu de mim saberei
quando me afogar na tua mão.
Direi, então, que vivi
sem precisar de ter nascido.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
O rei
Dentro de nós há um rei
cujo único saber é não reinar.
O seu trono é tão nada
que nunca será destronado.
Um monarca sem castelo nem garupa
que apenas do ingovernável se ocupa:
neste mundo só entende quem ama.
E quem ama não sabe quem é.
Como este soberano
cuja coroa é tão leve
que apenas lhe dá licença
para um sonho breve.
Soberano tão esquecido de toda a lei
que, no fim, confessa:
- fui rei, apenas quando errei.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Pergunta-me
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Prematuros olhos
Muito antes de mim,
os meus olhos
andaram a despir o mundo.
O que era roupa
tombou num escuro abismo,
desolada ave sob chuva.
E não era roupa,
era alma de gente,
sonhos à procura do tempo.
Debruçado na margem,
a lavadeira sabe:
não é de roupa que cuida.
É o próprio rio que ela lava.
E no seu ventre,
onde a luz se ajoelha,
certa vez se desenroscou
a trança cega do Tempo.
Por isso, mãe,
os meus olhos são teus.
E eles não servem para ver.
Apenas para recordar.
O que antes de ser luz
foi palavra e corpo.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Raiz de orvalho
Sou agora menos eu
e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram
Quem me dera acontecer
essa morte
de que não se morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada
De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens
Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância
Amam-me demasiado
as cosias de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Sabedoria
Não me basta ser:
eu quero o transbordar de tudo,
o desassombro
que toda margem desconhece.
Não me basta morar:
quero ser habitado
por quem ao destino desobedece.
Não me basta viver:
quero a vida como febre,
o amor como lume e água.
No final, saberás:
o que se ama não regressa.
O que se vive
não começa.
E o sonho
nunca tem pressa.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Sementeira
O poeta
faz agricultura às avessas:
numa única semente
planta a terra inteira.
Com lâmina de enxada
a palavra fere o tempo:
decepa o cordão umbilical
do que pode ser um chão nascente.
No final da lavoura
o poeta não tem conta para fechar:
ele só possui
o que não se pode colher.
Afinal,
não era a palavra que lhe faltava.
Era a vida que ele, nele, desconhecia.
- Mia Couto, em "Tradutor de chuvas". Lisboa: Editorial Caminho, 2011, p. 71.
Esta deveria ser a hora
É então que surges
Mas os ruídos da noite
Longe
Sono coloquial
Da velhice
Sempre invejei
o adormecer
no meio da conversa.
Esse descer de pálpebra
não é nemidade nem cansaço.
Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
senso da poesia.
- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.
Trajecto
Tristeza
A minha tristeza
não é a do lavrador sem terra.
A minha tristeza
é a do astrónomo cego.
- Mia Couto, em "Tradutor de chuvas". Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
Vagas e lumes
Há quem se deite
em fogo
para morrer.
Pois eu sou
como o vagalume:
- só existo
quando me incendeio.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Viagem
Se chorasse, agora,
CONTO
Miudádivas, pensatempos
(Para Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias)
Estou sem texto, enriquecido de nada. Aqui na margem de uma floresta em Niassa, me desbicho sem vontades para humanidades. Entendo só de raízes, vésperas de flor. Me comungo de térmites, socorrido pela construção do chão. No último suspiro do poente é que podem existir todos sóis. Essa é a minha hora: me ilimito a morcego. Já não me pesam cidades, o telhado deixa de estar suspenso ao inverso em minhas asas. Me lanço nessa enseada de luz, vermelhos desocupados pelo dia.
Nesse entardecer de tudo vou empobrecendo de palavras. Não tenho afilhamento com o papel, estou pronto para ascender a humidade, simples desenho de ausência. Na tenda onde me resguardo me chegam, soltas e dispares, desvisões, pensatempos, proesias. Assim, em miudádivas ao poeta:
A primavera cabe dentro do grilo.
Cigarras se alfabetizam de silêncios.
No liso da parede,
a osga se prepara para transparências,
Adquire a forma do nada.
Enquanto o ramo vai transitando para camaleão.
Na mafurreira,
sobem ninhos de arribação, ovos do arco-íris.
A aranha confunde madrugada com sótão,
artefactando materiais de orvalho.
Ela se mantimenta de esperas.
Minha tenda se engrandece a teia.
Uma mosca se inadverte na armadilha.
Igual o amor
que rouba mecanismos de viver.
Formigas transportam infinitamente a terra.
Estarão mudando eternamente de planeta?
Estarão engolindo o mundo?
Insectos sonham ser olhados pelo sol.
Mas só a chama da vela os vela.
Já o ovo é iluminado por dentro,
tocado pela luz do infinito.
O ovo repete o total inicio,
redundante gravidez do mundo.
Por isso, este surpreendido ovo
não tem competência para meu jantar.
Pena o estômago não entender poesias.
Nada se parece tanto: poente e amanhecer.
Defeitos na tela do firmamento?
Instantâneas aves,
pedras que se despoentam.
A noite acende o escuro.
Tudo semelha tudo
Só a coruja atrapalha a eternidade.
Está chovendo horas,
a água está a ganhar-me semelhanças.
Escuto ventos, derrames de céu.
Parecem-me luas e são lábios.
Lembranças da minha amada.
A tua boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Saudade: sou mais tu que tu.
Escuto, depois a enchente.
Longe, a água desobedece a paisagens.
O rio toma banho de troncos,
raízes da água se soltam.
Sigo de catarata, luz encharcada.
E peço desculpa á margem:
desconhecia as unhas de minha transbordância.
Meu sonho está cega para razões.
Sei só escrever palavras que não há.
Depois, o sono me encaracola:
estou a ser pensado por pedras,me habilito a chão, o desfuturo.
- Mia Couto, em "Contos do nascer da terra". Lisboa: Editorial Caminho, 2009.
O bairro da minha infância
Não são as criaturas que morrem.
É o inverso:
só morrem as coisas.
As criaturas não morrem
porque a si mesmas se fazem.
E quem de si nasce
à eternidade se condena.
Uma poeira de túmulo
me sufoca o passado
sempre que visito o meu velho bairro.
A casa morreu
no lugar onde nasci:
a minha infância
não tem mais onde dormir.
Mas eis que,
de um qualquer pátio,
me chegam silvestres risos
de meninos brincando.
Riem e soletram
as mesmas folias
com que já fui soberano
de castelos e quimeras.
Volto a tocar a parede fria
e sinto em mim o pulso
de quem para sempre vive.
A morte
é o impossível abraço da água.
- Mia Couto, em "Tradutor de chuvas". Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
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:: Pepetela (Angola)
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Mia Couto - poemas
Mia Couto - foto: Fernando Gomes/Agencia RBS |
“Sou escritor e cientista. Vejo as duas actividades, a escrita e a ciência, como sendo vizinhas e complementares. A ciência vive da inquietação, do desejo de conhecer para além dos limites. A escrita é uma falsa quietude, a capacidade de sentir sem limites. Ambas resultam da recusa das fronteiras, ambas são um passo sonhado para lá do horizonte. A Biologia para mim não é apenas uma disciplina científica mas uma história de encantar, a história da mais antiga epopeia que é a Vida. É isso que eu peço à Ciência: que me faça apaixonar. É o mesmo que eu peço à literatura.”
“[...] a escrita não é uma técnica e não se constrói um poema ou um conto como se faz uma operação aritmética. A escrita exige sempre a poesia. E a poesia é um outro modo de pensar que está para além da lógica que a escola e o mundo moderno nos ensinam. Sem a arrogância de as tentarmos entender. Apenas com a ilusória tentativa de nos tornarmos irmãos do universo.”
Mia Couto, com o cão Chocolate, a olhar para o rio Umbeluzi, que abastece a cidade de Maputo - foto: (...) |
"Na ciência (como em outras actividades) o mais importante não é o que chamamos científico. É o lado humano. Criou-se a ideia de que o cientista é isento de erro, uma espécie de ser privilegiado que apenas trilha pelos atalhos do rigor e da exactidão. Essa aversão pelo erro é o mais grave dos erros. È tão vital errarmos como acertarmos. Devemos afastar o medo de errar. Devemos o gosto por experimentar, mesmo cometendo falhas. A natureza foi evoluindo graças ao erro básico que é a mutação. Se os genes nunca falhassem não haveria a diversidade necessária para a continuidade da Vida. Os processos vitais exigem, ao mesmo tempo, o rigor e o erro. Não podemos ter medo de não saber. O que devemos recear é o não termos inquietação para passarmos a saber.”
“O que pode suscitar uma pequena história é quanto por trás do cientista reside um homem, com suas ignorâncias, suas incertezas e suas crenças tantas vezes muito pouco científicas.”
“Só se escreve com intensidade se vivermos intensamente. Não se trata apenas de viver sentimentos mas de ser vivido por sentimentos.”
“Há quem acredite que a ciência é um instrumento para governarmos o mundo. Mas eu periferia ver no conhecimento científico um meio para alcançarmos não domínios mas harmonias. Criarmos linguagens de partilhas com os outros, incluindo os seres que acreditamos não terem linguagem. Entendermos e partilharmos a língua das árvores, os silenciosos códigos das pedras e dos astros.
Conhecermos não para sermos donos. Mas para sermos mais companheiros das criaturas vivas e não vivas com quem partilhamos este universo. Para escutarmos histórias que nos são, em todo momento, contadas por essas criaturas.”
- trechos do texto elaborado para crianças lusófonas integradas no programa interescolar "Ciência Viva", Julho de 2004, publicado em "Pensatempos" de Mia Couto. 2ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 2005, p. 45-49. Fonte: Mia Coutiando.
:: COUTO, Mia. Uma palavra de conselho e um conselho sem palavras. em “Ciência Viva”. Acesse o texto na íntegra no link. (acessado em 03.05.2015).
Capa dos Livros de Poesia de Mia Couto - Editorial Caminho (Templo Cultural Delfos) |
OBRA POÉTICA DE MIA COUTO
:: Raiz de orvalho e outros poemas. 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 1999.
:: Idades cidades divindades. Maputo/Moçambique: Sociedade Editorial Ndjira, 2007; 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2007.
:: Tradutor de chuvas. 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2011.
:: Vagas e lumes. 1ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
## Outras obras e biografia de Mia Couto, acesse Aqui!
:: Vagas e lumes. 1ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
## Outras obras e biografia de Mia Couto, acesse Aqui!
Mia Couto - foto: DR |
POEMAS SELECIONADOS
A adiada enchente
Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.
Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.
Gravidez de fúrias e cegueiras,
os bichos perdendo o pé,
eu perdendo as palavras.
Simples espera
daquilo que não se conhece
e, quando se conhece,
não se sabe o nome
- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.
A casa
Sei dos filhos
pelo modo como ocupam a casa:
uns buscam os recantos,
outros existem à janela.
A uns satisfaz uma sombra,
a outros nem o mundo basta.
Uns batem com a porta,
outros hesitam como se não houvesse saída.
Raras vezes sou pai.
Sou sempre todos os meus filhos,
sou a mão indecisa no fecho,
sou a noite passada entre relógio e escuro.
Em mim ecoa a voz
que, à entrada, se anuncia: cheguei!
E eu sorrio, de resposta: chegou?
Mas se nunca ninguém partiu…
E tanto em mim
demoram as esperas
que me fui trocando por soalho
e me converti em sonolenta janela.
Agora, eu mesmo sou a casa,
casa infatigável casa
a que meus filhos
eternamente regressam.
- Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”. Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
A demora
O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.
Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.
Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.
Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.
Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.
O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.
- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.
Mia Couto - foto Sicnoticias/Arquivo |
No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptível crescer
como carne da lua
nos nocturnos lábios entreabertos
E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar
No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada
Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio
- Mia Couto, em "Raiz de Orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
As ruas
No tempo
em que havia ruas,
ao fim da tarde
minha mãe nos convocava:
era a hora do regresso.
E a rua entrava
connosco em casa.
Tanto o Tempo
morava em nós
que dispensávamos futuro.
Recolhida em meu quarto,
a cidade adormecia
no mesmo embalo da nossa mãe.
À entrada da cama,
eu sacudia a areia dos sonhos
e despertava vidas além.
Entre casa e mundo
nenhuma porta cabia:
que fechadura encerra
os dois lados do infinito?
- Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”. Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
Autobiografia
Onde eu nasci
há mais terra que céu.
Tanto leito é uma bênção
para mortos e sonhadores.
E de tão pouco ser o céu
nasce o sol
em gretas nos nossos pés
e os corações se apertam
quando remoinhos de poeira
se elevam nos telhados.
As mães
espanam o teto
e poeiras de astros
cobrem o soalho.
De tão raso o firmamento,
a chuva tropeça nas copas
enquanto nuvens
se engravidam de rios.
Com tanta escassez de céu
não há encosto
nem para a mais minguante lua
e os meninos,
na ponta dos dedos,
ascendem estrelas.
Pois,
nessa terra
que é tanta para tão pouco céu,
calhou-me a mim ser ave.
Pequenas que são,
as minhas asas parecem-me enormes.
Envergando,
escondo-as dos olhares vizinhos.
Nas minhas costas
pesam
versos e plumas.
Voarei,
um dia,
sem saber
se é de terra ou de céu
a pegada do voo que sonhei.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Não ter morada
habitar
como um beijo
entre os lábios
fingir-se ausente
e suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Beijo
Não quero o primeiro beijo:
basta-me
o instante antes do beijo.
Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.
O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.
Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.
- Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”. Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça
Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem retorno
Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci
Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos
No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Aves marinhas soltaram-se dos teus dedos
quando anunciaste a despedida
e eu que habitara lugares secretos
e me embriagara com os teus gestos
recolhi as palavras vagabundas
como a tempestade que engole os barcos
porque ama os pescadores
Impossível separarmo-nos
agora que gravaste o teu sabor
sobre o súbito
e infinito parto do tempo
Por isso te toco
no grão e na erva
e na poeira da luz clara
a minha mão
reconhece a tua face de sal
E quando o mundo suspira
exausto
e desfila entre mercados e ruas
eu escuto sempre a voz que é tua
e que dos lábios
se desprende e se recolhe
Ali onde se embriagam
os corpos dos amantes
o te ventre aceitou a gota inicial
e um novo habitante
enroscou-se no segredo da tua carne
Nesse lugar
encostámos os nossos lábios
à funda circulação do sangue
porque me amavas
eu acreditava ser todos os homens
comandar o sentido das coisas
afogar poentes
despertar séculos à frente
e desenterrar o céu
para com ele cobrir
os teus seios de neve
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Destino
à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos
vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso
conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso
agora
que mais
me poderei vencer?
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Erro poético
Sou o açúcar
procurando a formiga.
Meu carreiro
não tem linha.
É um ponto, um planetário grão.
A minha natureza
é uma inacabada caligrafia:
apenas os erros me defendem.
O amor apenas
me rasura a alma.
Com a formiga
partilho alucinogénicos:
migas de paixão, migalhas de doçura.
- Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”. Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
(Escre)ver-me
nunca escrevi
sou
apenas um tradutor de silêncios
a vida
tatuou-me os olhos
janelas
em que me transcrevo e apago
sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar
- Mia Couto (fevereiro 1985). em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999, p. 60.
Errata
Quem é mortal, mente.
Mentirosos,
ainda mais,
os tais
imortais.
Sem culpa uns e outros.
O verbo morrer
é que é sujeito falso
e de duvidosa acção.
Mais verdadeiro seria
se não fosse verbo.
Ou se conjugasse apenas
em forma passiva: ser morrido.
Como eu,
mais que as vezes que nasci,
fui morrido por ti.
E, assim, findo
num engano de rio:
simulando que morre
mas sendo água eterna.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Espiral
No oculto do ventre,
o feto se explica como o Homem:
em si mesmo enrolado
para caber no que ainda vai ser.
Corpo ansiando ser barco,
água sonhando dormir,
colo em si mesmo encontrado.
Na espiral do feto,
o novelo do afecto
ensaia o seu primeiro infinito.
- Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”. Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
Frutos
Mia Couto - foto: Fernando Gomes/Agencia RBS |
não é o fruto.
É a sombra.
A térrea,
quotidiana,
abnegada sombra:
no inverso do suor colhida,
no avesso da mão guardada.
Há a estação dos frutos.
Ninguém celebra a estação das sombras.
Assim, o amor e a paixão:
um, fruto; outro, sombra.
A suave e cruel mordedura
do fruto em tua boca:
mais do que entrar em ti
eu quero ser tu.
O que em mim espanta:
não a obra do tempo
mas a viagem do Sol na seiva da árvore
A arte da mangueira
é a veste de sombra
embrulhando o seu ventre solar.
Para o homem
vale a polpa.
Para a terra
só a semente conta.
- Mia Couto, em "Tradutor de chuvas". Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
Fui sabendo de mim
Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia
pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia
fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei
eu vi
a árvore morta
e soube que mentia
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Horário do fim
morre-se nada
quando chega a vez
é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos
morre-se tudo
quando não é o justo momento
e não é nunca
esse momento
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Idade
Mente o tempo:
a idade que tenho
só se mede por infinitos.
Pois eu não vivo por extenso.
Apenas fui a vida
em relampejo do incenso.
Quando me acendi
foi nas abreviaturas do imenso.
- Mia Couto, em “Vagas e lumes”. Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Identidade
Preciso ser um outro
Para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que desgasta
Sou pólen sem inseto
Sou areia sustentando
O sexo das árvores
Existo onde me desconheço
Aguardando pelo meu passado
Ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
No mundo por que luto nasço.
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Lembrança alada
Em alguma vida fui ave.
Guardo memória
de paisagens espraiadas
e de escarpas em voo rasante.
E sinto em meus pés
o consolo de um pouso soberano
na mais alta copa da floresta.
Liga-me à terra
uma nuvem e seu desleixo de brancura.
Vivo a golpes
com coração de asa
e tombo como um relâmpago
faminto de terra.
Guardo a pluma
que resta dentro do peito
como um homem guarda o seu nome
no travesseiro do tempo.
Em alguma ave fui vida.
- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.
Lições
Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.
Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.
Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.
Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.
Trêmula, a haste
me pede
o adiar da noite.
Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.
Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.
Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?
- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.
Manhã
e num breve instante
sinto tudo
sinto-me tudo
Deito-me no meu corpo
e despeço-me de mim
para me encontrar
no próximo olhar
Ausento-me da morte
não quero nada
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão
Nada me alimenta
porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz e a poeira
A vida (ensinaram-me assim)
deve ser bebida
quando os lábios estiverem já mortos
Educadamente mortos
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Mudança de idade
Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores nocturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.
- Mia Couto, em "Tradutor de chuvas". Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
Noturnamente
Noturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo
Peito que em mim respira
Noturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo
Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio
Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio
Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
No teu rosto
competem mil madrugadas
Nos teus lábios
a raiz do sangue
procura suas pétalas
A tua beleza
é essa luta de sombras
é o sobressalto da luz
num tremor de água
é a boca da paixão
mordendo o meu sossego
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
competem mil madrugadas
Nos teus lábios
a raiz do sangue
procura suas pétalas
A tua beleza
é essa luta de sombras
é o sobressalto da luz
num tremor de água
é a boca da paixão
mordendo o meu sossego
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Números
Desiguais as contas:
para cada anjo, dois demónios.
Para um só Sol, quatro Luas.
Para a tua boca, todas as vidas.
Dar vida aos mortos
é obra para infinitos deuses.
Ressuscitar um vivo:
um só amor cumpre o milagre.
- Mia Couto, em "Tradutor de chuvas". Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.
Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.
E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.
E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.
Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.
Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.
Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.
E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.
E levito, vôo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.
Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.
- Mia Couto, em "idades cidades divindades". Lisboa: Editora Caminho, 2007.
O espelho
Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.
Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.
Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.
A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.
- Mia Couto, em "Idades, cidades e divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.
A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.
- Mia Couto, em "Idades, cidades e divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.
O habitante
(ao meu pai)
Se partiste, não sei.
Porque estás,
tanto quanto sempre estiveste.
Essa tua,
tão nossa, presença
enche de sombra a casa
como se criasse,
dentro de nós,
uma outra casa.
No silêncio distraído
de uma varanda
que foi o teu único castelo,
ecoam ainda os teus passos
feitos não para caminhar
mas para acariciar o chão.
Nessa varanda te sentas
nesse tão delicado modo de morrer
como se nos estivesse ensinando
um outro modo de viver.
Se o passo é tão celeste
a viagem não conta
senão pelo poema que nos veste.
Os lugares que buscaste
não têm geografia.
São vozes, são fontes,
rios sem vontade de mar,
tempo que escapa da eternidade.
Moras dentro,
sem deus nem adeus.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
O poeta
escreve para se ver livre delas.
A palavra
torna o poeta
pequeno e sem invenção.
Quando
sobre o abismo da morte,
o poeta escreve terra,
na palavra ele se apaga
e suja a página de areia.
Quando escreve sangue
o poeta sangra
e a única veia que lhe dói
é aquela que ele não sente.
Com raiva
o poeta inicia a escrita
como um rio desflorando o chão.
Cada palavra é um vidro em que se corta.
O poeta não quer escrever.
Apenas ser escrito.
Escrever, talvez,
apenas enquanto dorme.
- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.
O pouco pó que somos
Não calcas
apenas um pedaço de caminho.
A Terra inteira
está sempre debaixo dos teus pés.
O mesmo torrão que pisas
te irá pesar depois.
Se quiseres leve a eternidade
trata com leveza o chão.
Imaginas-te autor da viagem?
É o oposto:
a terra é que andou em ti.
E, sem queixa nem cansaço,
de mundo e gente
a Terra te acrescentou.
A estrada,
que acreditaste alheia e morta,
é o teu corpo
feito de pedra e sonho.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
O que direi
Direi que nasci
se fores água
em minha boca desaguada.
Direi que cheguei
se o teu peito
em mim abrir o seu leito.
O rio se espraia
para se perder do chão,
e eu de mim saberei
quando me afogar na tua mão.
Direi, então, que vivi
sem precisar de ter nascido.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
O rei
Dentro de nós há um rei
cujo único saber é não reinar.
O seu trono é tão nada
que nunca será destronado.
Um monarca sem castelo nem garupa
que apenas do ingovernável se ocupa:
neste mundo só entende quem ama.
E quem ama não sabe quem é.
Como este soberano
cuja coroa é tão leve
que apenas lhe dá licença
para um sonho breve.
Soberano tão esquecido de toda a lei
que, no fim, confessa:
- fui rei, apenas quando errei.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Palavra que desnudo
Entre a asa e o vôo
nos trocamos
como a doçura e o fruto
Entre a asa e o vôo
nos trocamos
como a doçura e o fruto
nos unimos
num mesmo corpo de cinza
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
num mesmo corpo de cinza
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Para ti
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Pergunta-me
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Não saberei nunca
dizer adeus
Afinal,
só os mortos sabem morrer
Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser
Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo
Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos
Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca
Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo.
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Prematuros olhos
Muito antes de mim,
os meus olhos
andaram a despir o mundo.
O que era roupa
tombou num escuro abismo,
desolada ave sob chuva.
E não era roupa,
era alma de gente,
sonhos à procura do tempo.
Debruçado na margem,
a lavadeira sabe:
não é de roupa que cuida.
É o próprio rio que ela lava.
E no seu ventre,
onde a luz se ajoelha,
certa vez se desenroscou
a trança cega do Tempo.
Por isso, mãe,
os meus olhos são teus.
E eles não servem para ver.
Apenas para recordar.
O que antes de ser luz
foi palavra e corpo.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Primeira palavra
Aproxima o teu coração
e inclina o teu sangue
para que eu recolha
os teus inacessíveis frutos
para que prove da tua água
e repouse na tua fronte
Debruça o teu rosto
sobre a terra sem vestígio
prepara o teu ventre
para a anunciada visita
até que nos lábios umedeça
a primeira palavra do teu corpo.
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Promessa de uma noite
cruzo as mãos
sobre as montanhas
um rio esvai-se
ao fogo do gesto
que inflamo
a lua eleva-se
na tua fronte
enquanto tacteias a pedra
até ser flor
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Raiz de orvalho
Sou agora menos eu
e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram
Quem me dera acontecer
essa morte
de que não se morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada
De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens
Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância
Amam-me demasiado
as cosias de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Saio de mim
para quem sou
e jamais chego ao destino.
No caminho do ser
meu gozo é me perder.
Meu coração só tem morada
onde se acende um outro peito.
Meu anjo está cego,
meu poeta está mudo,
meu guru ficou amnésico.
O poeta
sabia que não ia por ali.
Eu vou por onde não sei.
Meu aqui
é sempre além.
- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.
Sabedoria
Não me basta ser:
eu quero o transbordar de tudo,
o desassombro
que toda margem desconhece.
Não me basta morar:
quero ser habitado
por quem ao destino desobedece.
Não me basta viver:
quero a vida como febre,
o amor como lume e água.
No final, saberás:
o que se ama não regressa.
O que se vive
não começa.
E o sonho
nunca tem pressa.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Saudades
Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés
Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas
Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trêmula, raiz exposta
Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
do teu vestido
caindo aos nossos pés
Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas
Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trêmula, raiz exposta
Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Seios e anseios
As vezes que morri
boca derramada entre os teus seios,
todas essas vezes
não me deram luto
porque, de mim, eu em ti nascia.
Todos esses abismos,
meu amor,
não me deram regresso.
Depois de ti,
não há caminhos.
Porque eu nasci
antes de haver vida,
depois de tu chegares.
- Mia Couto, em "Tradutor de chuvas". Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
Sementeira
O poeta
faz agricultura às avessas:
numa única semente
planta a terra inteira.
Com lâmina de enxada
a palavra fere o tempo:
decepa o cordão umbilical
do que pode ser um chão nascente.
No final da lavoura
o poeta não tem conta para fechar:
ele só possui
o que não se pode colher.
Afinal,
não era a palavra que lhe faltava.
Era a vida que ele, nele, desconhecia.
- Mia Couto, em "Tradutor de chuvas". Lisboa: Editorial Caminho, 2011, p. 71.
Ser, parecer
Entre o desejo de ser
e o receio de parecer
o tormento da hora cindida
Na desordem do sangue
a aventura de sermos nós
restitui-nos ao ser
que fazemos de conta que somos
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Silvestre e o idioma
Silvestre quer saber
porque razão eu estrago o português
escrevendo palavras que nem há.
Não é a pessoa que escolhe a palavra.
É o inverso.
Isso eu podia ter respondido.
Mas não.
O tudo que disse foi:
é um crime passional, Silvestre.
É que eu amo tanto a Vida
que ela não tem
cabimento em nenhum idioma.
Silvestre sorriu.
Afinal, também ele já cometera
o idêntico crime:
todas as mulheres que amara
ele as rebaptizara, vezes sem fim.
Amor se parece com a Vida:
ambos nascem na sede da palavra,
ambos morrem na palavra bebida.
- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editora Caminho, 2007.
Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso
Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio
É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou
Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna
Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.Sono coloquial
Da velhice
Sempre invejei
o adormecer
no meio da conversa.
Esse descer de pálpebra
não é nemidade nem cansaço.
Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
senso da poesia.
- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.
Sotaque da terra
Estas pedras
sonham ser casa
sei
porque falo
a língua do chão
nascida
na véspera de mim
minha voz
ficou cativa do mundo,
pegada nas areias do Índico
agora,
ouço em mim
o sotaque da terra
e choro
com as pedras
a demora de subirem ao sol - Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Estas pedras
sonham ser casa
sei
porque falo
a língua do chão
nascida
na véspera de mim
minha voz
ficou cativa do mundo,
pegada nas areias do Índico
agora,
ouço em mim
o sotaque da terra
e choro
com as pedras
a demora de subirem ao sol - Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Trajecto
Na vertigem do oceano
vagueio
sou ave que com o seu voo
se embriaga
Atravesso o reverso do céu
e num instante
eleva-se o meu coração sem peso
Como a desamparada pluma
subo ao reino da inconstância
para alojar a palavra inquieta
Na distância que percorro
eu mudo de ser
permuto de existência
surpreendo os homens
na sua secreta obscuridade
transito por quartos
de cortinados desbotados
e nas calcinadas mãos
que esculpiram o mundo
estremeço como quem desabotoa
a primeira nudez de uma mulher
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.Tristeza
A minha tristeza
não é a do lavrador sem terra.
A minha tristeza
é a do astrónomo cego.
- Mia Couto, em "Tradutor de chuvas". Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
Vagas e lumes
Há quem se deite
em fogo
para morrer.
Pois eu sou
como o vagalume:
- só existo
quando me incendeio.
- Mia Couto, em "Vagas e lumes". Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Viagem
O beijo da quilha
na boca da água
me vai trocando entre o céu e mar,
o azul de outro azul,
enquanto
na funda transparência
sinto a vertigem
de minha própria origem
e nem sequer já sei
que olhos são os meus
e em que água
se naufraga minha alma
Se chorasse, agora,
o mar inteiro
me entraria pelos olhos
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.Mia Couto - foto: Miguel Barreira |
Miudádivas, pensatempos
(Para Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias)
Estou sem texto, enriquecido de nada. Aqui na margem de uma floresta em Niassa, me desbicho sem vontades para humanidades. Entendo só de raízes, vésperas de flor. Me comungo de térmites, socorrido pela construção do chão. No último suspiro do poente é que podem existir todos sóis. Essa é a minha hora: me ilimito a morcego. Já não me pesam cidades, o telhado deixa de estar suspenso ao inverso em minhas asas. Me lanço nessa enseada de luz, vermelhos desocupados pelo dia.
Nesse entardecer de tudo vou empobrecendo de palavras. Não tenho afilhamento com o papel, estou pronto para ascender a humidade, simples desenho de ausência. Na tenda onde me resguardo me chegam, soltas e dispares, desvisões, pensatempos, proesias. Assim, em miudádivas ao poeta:
A primavera cabe dentro do grilo.
Cigarras se alfabetizam de silêncios.
No liso da parede,
a osga se prepara para transparências,
Adquire a forma do nada.
Enquanto o ramo vai transitando para camaleão.
Na mafurreira,
sobem ninhos de arribação, ovos do arco-íris.
A aranha confunde madrugada com sótão,
artefactando materiais de orvalho.
Ela se mantimenta de esperas.
Minha tenda se engrandece a teia.
Uma mosca se inadverte na armadilha.
Igual o amor
que rouba mecanismos de viver.
Formigas transportam infinitamente a terra.
Estarão mudando eternamente de planeta?
Estarão engolindo o mundo?
Insectos sonham ser olhados pelo sol.
Mas só a chama da vela os vela.
Já o ovo é iluminado por dentro,
tocado pela luz do infinito.
O ovo repete o total inicio,
redundante gravidez do mundo.
Por isso, este surpreendido ovo
não tem competência para meu jantar.
Pena o estômago não entender poesias.
Nada se parece tanto: poente e amanhecer.
Defeitos na tela do firmamento?
Instantâneas aves,
pedras que se despoentam.
A noite acende o escuro.
Tudo semelha tudo
Só a coruja atrapalha a eternidade.
Está chovendo horas,
a água está a ganhar-me semelhanças.
Escuto ventos, derrames de céu.
Parecem-me luas e são lábios.
Lembranças da minha amada.
A tua boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Saudade: sou mais tu que tu.
Escuto, depois a enchente.
Longe, a água desobedece a paisagens.
O rio toma banho de troncos,
raízes da água se soltam.
Sigo de catarata, luz encharcada.
E peço desculpa á margem:
desconhecia as unhas de minha transbordância.
Meu sonho está cega para razões.
Sei só escrever palavras que não há.
Depois, o sono me encaracola:
estou a ser pensado por pedras,me habilito a chão, o desfuturo.
- Mia Couto, em "Contos do nascer da terra". Lisboa: Editorial Caminho, 2009.
Mia Couto - foto: Expresso/pt |
Não são as criaturas que morrem.
É o inverso:
só morrem as coisas.
As criaturas não morrem
porque a si mesmas se fazem.
E quem de si nasce
à eternidade se condena.
Uma poeira de túmulo
me sufoca o passado
sempre que visito o meu velho bairro.
A casa morreu
no lugar onde nasci:
a minha infância
não tem mais onde dormir.
Mas eis que,
de um qualquer pátio,
me chegam silvestres risos
de meninos brincando.
Riem e soletram
as mesmas folias
com que já fui soberano
de castelos e quimeras.
Volto a tocar a parede fria
e sinto em mim o pulso
de quem para sempre vive.
A morte
é o impossível abraço da água.
- Mia Couto, em "Tradutor de chuvas". Lisboa: Editorial Caminho, 2011.
Mia Couto - foto: Daniel Castellano |
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Como citar:
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). Mia Couto - poemas. Templo Cultural Delfos, maio/2015. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). Mia Couto - poemas. Templo Cultural Delfos, maio/2015. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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** Página atualizada em 03.05.2015.