Sunday, 20 March 2011

SINA - canoas do Pantanal

REVISTA SINA - março de 2011
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Michèle Sato

o início da viagem fiquei sem saber me expressar. No barulho do motor daquele pequeno barco, o trajeto me conduzia a um certo tempo, que ainda sem conhecer direito, se anunciava como “tempo das águas”. Não um tempo cronológico, mas uma temporalidade regida pela natureza do Pantanal.
O que me esperava poderia ser como alguma coisa de vida insaciável, pulsando entre os dramas insólitos, convertendo toda paisagem entre o verde e o azul na paixão pela natureza. Também havia ali um cinza de um céu nublado, respingando chuva fria no frescor do pensamento. Um relâmpago humano iluminou a memória, num laço de antípodas e trechos de músicas que não fariam nenhum sentido real, mas que certamente tocariam a alma surrealista. De fato, logo adiante da viagem, meus olhos seriam testemunhas de uma estrada de terra que se tornaria estrada de água, nos conduzindo ao vilarejo do Pantanal.
Um pássaro aqui e outro ali se emplumavam entre voos e pousos, o vento tocava os cabelos escandalosamente e a mente cada vez mais se agitava a espera do tempo seguinte. Uma viagem sem muita bagagem, sem gestos de abandono ou promessas de amanhã. Uns dois ou 3 livros, roupas, repelentes [muitos repelentes!] e um desejo frenético de liberdade, entre filhos, amigas e sonhos.
Á sombra de homens nas águas, os corpos pareciam desnudos misturando entre árvores e habitações inundadas. Raízes que se fincavam nas hélices borbulhando espelhos na insistência do sol, brilhando na espuma da água ou no reflexo do sorriso, até beijando a boca com fulgor de lantejoulas insaciáveis que regressavam no barco. Uma aventura no mundo da água, no tempo da água e quiçá na identidade com a água...
São Pedro de Joselândia é um destes lugares que o canto das águas se mistura com a festa das estrelas. Sem precisar de portos, cada curva pode ser a parada necessária para compreender o significado de “áreas úmidas”. Na rota que se desenhava, talvez a aventura nem tivesse um final, pois o contato com a água fazia o imaginário borbulhar de ideias, sentimentos e esperanças.
É no tempo das águas, e na sinergia com a umidade do ar, que os canoeiros de Joselândia fazem as suas canoas. Para além da pesca ou do transporte, uma canoa pantaneira transcende o significado material, e torna-se uma expressão da arte, fincada na cultura imaterial de um patrimônio pantaneiro que teve o matrimônio com a beleza natural.
Na identificação da árvore, o corte é calculado, devidamente matematizado por cordas com “pó de pilha” no cálculo de um mestre que demonstra paixão pelo que faz. Suas mãos acertam o machado com o ritmo de seu coração, acelerado e forte, sugando as energias para que a vida permaneça naquele pedaço de árvore que, tombada, terá a vital função de transportar corpos cheios de fogo da paixão, suavizados pelas águas pantaneiras. Outros instrumentos vêm ajudar o grande mestre: além da corda que oferece a cartografia do corte com som, a percussão se dá nas machadadas ritmadas, como se um ano de treino fosse necessário na orquestra da canoa. Os teclados são os gomos da canoa que não são cortados, acolhendo o canoeiro e algum viajante que assopre a gaita enquanto a canoa se resvala.
O acompanhamento musical é imprescindível para a “feitura” da escultura, afinal, uma canoa é uma obra de arte que se desliza em todas as direções. Pequena e ágil, adentra em locais que só os pantaneiros conhecem, e onde os peixes são maiores no cotidiano gastronômico de Joselândia.
Não é fácil caracterizar o que seja uma canoa, pois parece que as palavras se fundem com a respiração e a frase que esvai pode ser audível, mas a emoção fica por debaixo das raízes e à mercê daqueles olhos na água, pois “há mais olhos na água do que cabelos na terra”. Um encantado agarra minha garganta e aprisiona a palavra que assiste a “feitura da canoa”. Dá pirueta no corpo e devolve a emoção em compartilhar a inquietude de mãos e machados que esculpem uma enorme cambará. Na sinfonia da canoa, há que se ter tempo também do silêncio, para que a emoção acalente a construção dos sentidos.
Foi neste momento que o silêncio foi quebrado com as largas asas de um pássaro aquático, de pés amarelos, plumas brancas e bico que guardava outra melodia, como se alcançasse a sintonia das estrelas em pleno dia. O tempo das águas é a época da “feitura” da canoa; e a arte da canoa é a possibilidade de sonhar sem precisar dormir.
De cantar sem a necessidade de ser afinado nas cordas de um rio, ou de dançar nas águas que se ondulam pela passagem da canoa.
Para além de um preço econômico, o Pantanal é ainda um lugar misterioso que une gente e natureza, entre águas e terras que se revezam para formar estradas, de paixões que ardem no por-do-sol e de pássaros que cortam o ar no acalento da brisa. A cultura torna-se íntima da natureza, e a arte se alia ao cotidiano de lutas. Talvez carregue tristezas, talvez carregue saudades... Mas encostada na margem, uma canoa consegue rimar paisagem com coragem: de resistir aos avanços de tecnologias frias, de modernidades líquidas ou de urbanidades vazias e persistir na identidade onde as águas constroem novos territórios de um tempo das águas...

MICHÈLE SATO
Um texto retornando da pesquisa de campo em São Pedro de Joselândia. Agradecimentos aos canoeiros, Waldir [SESC], Pica-Pau, Imara, João, Lúcia e ao meu filho Luigi: “a mãe descobriu que o menino gostava de natureza, além de computador”. E aos financiadores deste sonho em forma de pesquisa do laboratório social nº 5 do Instituto Nacional de Ciências e Tecnologia de Áreas Úmidas [INAU, CNPq] e também ao projeto Cartografia Socioambiental [FAPEMAT.  www.ufmt.br/gpea
Fotos: mimi [São Pedro de Joselândia]

Última modificação em Ter, 15 de Março de 2011 15:24

‘Yearning for a more beautiful world’: Pre-Raphaelite and Symbolist works from the collection of Isabel Goldsmith

https://www.christies.com/features/pre-raphaelite-works-owned-by-isabel-goldsmith-12365-3.aspx?sc_lang=en&cid=EM_EMLcontent04144C16Secti...