Saturday 18 July 2015

O SURREALISMO E O ZEN

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O SURREALISMO E O ZEN

EURICO
O SURREALISMO E O ZEN
O automatismo psíquico puro na origem da
pintura gestual caligráfica de inspiração zen
Dalila d’ Alte Rodrigues


O Surrealismo é um movimento de intervenção poética, que aspira à libertação total do homem, de acordo com as suas mais profundas aspirações, convicções e inquietações interiores. Ao assumir a Arte como um meio de expressão livre e criativa, o Surrealismo exalta a imaginação sem fronteiras que, segundo Baudelaire, permanece a “rainha das faculdades”, à qual André Breton se referiu nos seguintes termos: Querida imaginação: o que eu mais aprecio em ti é que tu não perdoas… Ou, como diz Mário Cesariny: Só a imaginação transforma; só a imaginação transtorna.
Ao longo de mais de 60 anos de actividade, a obra de Eurico Gonçalves desenvolve-se entre dois vectores constantes: a “inocência original” e a dimensão onírica da “poética do maravilhoso”, numa inter-relação com o automatismo psíquico e a exploração do acaso.
A “inocência original” ou a sábia ingenuidade, inteiramente assumida por Eurico, desde 1949, é evidente na poesia de Alberto Caeiro e em obras tão diferentes como as de Henri Rousseau, Miró e Chagall, cuja imagética onírica se insere na “poética do maravilhoso”, a que não deixam de ser sensíveis as suas pinturas iniciais. Aí se revelam símbolos ambivalentes da adolescente descoberta do Amor, nomeadamente o disco, arquétipo da harmonia, elemento constante em toda a sua obra figurativa e abstracta, com especial destaque na série Estou vivo e Escrevo Sol, nos anos 60 e 70 do séc. XX, em homenagem ao poeta António Ramos Rosa.
Pelo seu grau de fascínio, a pintura onírica de De Chirico e Tanguy exerceu inevitável influência na concepção de outras obras, como Erosão, 1954 e A Lua é um Cristal de Felicidade, 1955. Eurico veio a homenagear mais tarde, em 2005, o infinito espaço onírico de Tanguy, onde o céu e a terra se fundem, numa série de telas abstractas.
O automatismo psíquico, verbal e gráfico, anunciado nos Cadernos de Juventude de 1950-51, e que, desde então, Eurico nunca deixou de praticar, conduziu-o à redução das figuras a signos, noção que aprofundou e desenvolveu no encontro com Miró, Klee, Kandinsky e com o automatismo psíquico biomórfico de André Masson. Esse automatismo psíquico surrealista está na origem da pintura gestual, que se torna caligráfica e extremamente depurada, devido ao seu encontro com o Zen, desde o início dos anos 60. Valoriza o “Vazio” representado pela nudez do suporte, onde o menor sinal adquire uma expressividade imediata. Já André Breton adoptara o automatismo psíquico como a própria definição do surrealismo: Puro automatismo psíquico através do qual nos propomos exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja por qualquer outro meio, o real funcionamento do pensamento…
A autenticidade expressiva do automatismo psíquico não pode ser falseada, do mesmo modo que a arte de expressão directa zen não admite ser corrigida ou retocada; “arte sem artifício”, que requer grande concentração e total disponibilidade do artista, para estar “inteiro” no mínimo que faz. A propósito, Eurico descobre e cita frequentemente Ricardo Reis: Nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes (…) E afirma: A pintura é o meu espaço de liberdade; a minha pintura sabe mais de mim do que eu dela; eu sou o que faço; o fazer revela o ser
O Zen começa num estado de total disponibilidade para a experimentação imediata de tudo o que não pode ser apreendido apenas pelo intelecto, mas também e fundamentalmente pela prática, que envolve a acção directa do corpo e da mente, como um todo que aspira à grande libertação. Na arte de “ver claro na própria natureza”, segundo zen, o movimento natural e solto da mão, do punho, do braço, do corpo todo coaduna-se com a própria respiração e o estado de espírito do pintor. Na perspectiva zen, não há divergência entre o fazer, o sentir e o pensar imediatos; não há separação entre a experiência e o conhecimento, entre a arte e a vida; o zen é o facto vivo que, pelo seu grau de evidência, dispensa qualquer justificação teórica. O zen nunca explica, apenas afirma. Capta a vida tal como ela é, mas quando afirma isto, o “facto vivo” já passou e o zen deixou de existir. O zen só tem sentido enquanto acontece. O Budismo-Zen vê na Filosofia um meio de libertar a Filosofia da prisão conceptual; é uma filosofia da não-filosofia.

DADA-ZEN
A característica mais original da obra de Eurico Gonçalves é a relação que estabelece entre a atitude vitalista dada e a atitude filosófica zen. Dada questiona todos os conceitos e valores instituídos de arte, civilização e progresso. A atitude zen procura libertar a mente de todos os preconceitos que a impedem de “ver claro na própria natureza”. Ver claro é ver pela primeira vez. Como diria Matisse, quando se perde a capacidade de ver pela primeira vez, perde-se algo de muito original. O zenista não questiona nada, não nega nada, não explica nada; aceita serenamente tudo o que é simples e natural, sem conflitos, o que só é possível depois de libertar a mente de tudo o que a condiciona. Ao contrário do pensamento dualista ocidental, o espírito zen não separa o conhecimento da experiência. O espírito surrealista aproxima-se do espírito zen na síntese ou na união dos contrários. A propósito, André Breton afirmou: É hoje bem conhecido que o surrealismo não propôs outra coisa senão fazer o espírito saltar a barreira que lhe é oposta pelas antinomias acção-sonho, razão-loucura, sensação-representação, etc., as quais constituem o principal obstáculo do pensamento ocidental (…) neste sentido, nunca deixou de sopesar (…) os apoios encontrados na dialéctica de Heraclito e de Hegel (…) assim como na relação yin-yang do pensamento chinês e o seu culminar na filosofia zen.
Eurico descobre a convergência dada / zen na disponibilidade para aceitar a arte e a vida na sua pureza máxima.
Ao questionar todos os conceitos ou valores instituídos, o dadaísta parte deliberadamente da negação pela negação, que corresponde ao grau zero do conhecimento, para chegar à afirmação plena da vida. É uma atitude vitalista que se encontra com o zen. Partir do grau zero do conhecimento é libertar a mente de todos os preconceitos. Face a esse vazio, plenamente assumido, não há ideias prévias, modelos, códigos ou programas, mas uma grande abertura psíquica ou disponibilidade para aceitar o sentido imediato da arte e da vida, tão pura quanto possível. A vida sem Caderneta, como diria Mário Cesariny.
Tanto dada como zen se abrem ao carácter imprevisível do acaso, que preside a uma nova noção de liberdade. Só se é inteiramente livre perante o acaso – disse Novalis
O “cadavre-exquis” encontra, de algum modo, o equivalente zen no “mondo”, que explora o acaso, ao aceitar que todas as respostas são válidas para qualquer pergunta. O humor zen nasce dessas situações imprevisíveis ou inesperadas e verifica-se também na livre associação de imagens da colagem metafórica surrealista. Aliás, quase todas as técnicas surrealistas exploram o acaso: o “cadavre-exquis”, a colagem metafórica, a montagem objectual, a “decalcomania”, a “frottage” e o automatismo psíquico puro.

INESPERADA AFINIDADE ENTRE O SURREALISMO E O ZEN
Numa inesperada afinidade entre o surrealismo e o zen, Eurico descobre que o “satori” ou a “súbita iluminação espiritual” zen tem algo a ver com “o ponto do espírito” onde, segundo André Breton, o alto e o baixo, o interior e o exterior, o sonho e a acção, o real e o imaginário, deixam de ser percebidos contraditoriamente
O encontro de Eurico Gonçalves com o surrealismo, desde 1949, e com o zen, desde 1962, é feito de inevitáveis afinidades espirituais com personalidades que admira, nomeadamente os poetas Rimbaud, Lautréamont, Baudelaire, Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, António Maria Lisboa, Mário Cesariny, Michaux e Breton; os pintores: Henri Rousseau, Miró, Klee, Kandinsky, De Chirico, Tanguy, Masson e Degottex; o japonês Suzuki, conhecedor profundo do budismo zen; e os psicanalistas: Freud, Jung e Wilhelm Reich, que abordam o sonho, os dados imediatos do inconsciente e a sexualidade.
Mário Cesariny foi o pintor português que mais longe levou a prática do automatismo psíquico surrealista, desde 1947, historicamente a par de Wols e de Michaux. Sensível ao “desregramento dos sentidos” de Rimbaud, Cesariny declarou que foi a sua despintura informal e abstracta que o ajudou a desregrar e a desmembrar a linguagem dos (seus) versos.
Por seu turno, Henri Michaux, ao realizar escrita livre, não codificada, à margem da sua escrita literária, declarava: Eu desenho, pinto, para me descondicionar.
As despinturas, descolagens e desdobragens de Eurico mantêm correspondência com a filosofia zen, segundo a qual é pela negação do sinal que se cria um novo sinal. Sublinhe-se a importância do prefixo des, no desenvolvimento destes percursos.
Intuições zen, já António Maria Lisboa manifestava no início dos anos 50, antes de Mário Cesariny, que, em 1954, prefaciou a primeira exposição de Eurico e, em 1970, numa carta/ prefácio dirigida ao pintor, cita o autor de “Isso Ontem Único” e “Operação do Sol”: A seta já contém o alvo mas só percorre a seta aquele que lhe conhece o alvo. Assim é de olhos vendados que o grande atirador alveja
Curiosamente, na mesma época (1950-51), Eurico escreveu nos seus Cadernos de Juventude: Com os olhos bem fechados descrevo de-cór a tua configuração
Na referida carta-prefácio, Cesariny evoca os “admiráveis poemas” de Eurico do início dos anos 50 (que): em qualquer país menos agrícola teriam visto a publicação (o que só viria a acontecer 45 anos mais tarde, em 1995, porque até então eram considerados obscenos e, por isso, impublicáveis). Por estas e outras dificuldades de compreensão, o poeta recorda que já Breton promovera o Surrealismo Abstracto, a Arte Bruta, o Informalismo, a Pintura Létrica, Gestual, Zen, Concreta, Neo-Figurativa, Neo-Dada e lamenta a fraca repercussão que toda essa vanguarda exerceu na obra da maioria dos pintores surrealistas, sendo raros os que abordam o Surrealismo Abstracto. Nesta perspectiva, verificamos algumas excepções: Wols, Michaux, Cesariny, Masson, Eurico, Degottex, d’ Assumpção e poucos mais.
A carta de Cesariny, escrita em 1970, denuncia a solidão do surrealismo português, maltratado e por estudar, concluindo, a propósito de Eurico: Hoje (1970) a tua pintura afirma de forma entre nós talvez única, a única fidelidade que Breton pedia aos que diziam seu o surreal: um vanguardismo realmente expresso, realmente capaz de absorver e de, se necessário, destituir toda a vanguarda anterior. Entendo aqui por vanguarda a criação poética tão profundamente gerada na necessidade de transmitir o homem de uma época, que reúne e ultrapassa todas as épocas. Não é negar as épocas, o passado, não seria possível desfazermo-nos delas, é como arremessá-las para o futuro. Gesto que a tua retrospectiva singularmente significa – seta atirada para além do horizonte…
Isolado por atitude, Eurico nunca fez parte de grupos nem de anti-grupos surrealistas, apesar de se ter relacionado intensamente com as suas actividades, sendo um dos primeiros críticos portugueses a defender valores de difícil aceitação que, nos anos 60, eram discutidos ou recusados em Salões colectivos, como Cesariny, Álvaro Lapa, António Sena e Joaquim Bravo, hoje referenciados e consagrados pela crítica mais jovem. No campo da investigação do signo e da escrita gestual, comissariou e prefaciou exposições, publicando inúmeros artigos sobre artistas e poetas portugueses e estrangeiros, alguns deles relacionáveis com o espírito zen. Associou o surrealismo aos aspectos mais espontâneos do abstraccionismo lírico europeu, abeirando-se do Grupo “CoBrA” e do expressionismo abstracto americano de Pollock, De Kooning, Kline, Gottlieb e Motherwell. Estudou a pintura caligráfica de Tobey e Tomlin, o informalismo gestual de Twombly e Alain Davie, o biomorfismo de Gorky, o espacialismo luminoso e envolvente de Rothko e o fauvismo abstracto de Hofmann. Em Paris, interessou-se pelas obras de Tàpies, Millares, Alechinsky, Masson, Michaux, Degottex, Arpad e Ives Klein, que aderiram ao zen.
Jean Degottex foi o seu orientador artístico em Paris, em 1966 /67. Ambos se afirmam autodidactas. Ambos aderiram espontaneamente à filosofia zen e ao signo gestual, via automatismo psíquico, revelando afinidades pela extrema depuração a que chegam as suas obras. Ambos admiram a pintura e a personalidade do poeta Henri Michaux, prefaciado por Eurico, em 1972 (Galeria São Mamede, Lisboa).
A obra poética, plástica e ensaística de Eurico cita frequentemente e homenageia Duchamp, Picabia, Breton, António Maria Lisboa, Cesariny, Álvaro Lapa, Miró, Alechinsky, Ives Klein, Rothko, Arpad, Degottex, Michaux, André Masson e outros dadaístas, surrealistas e abstraccionistas relacionáveis com o zen, conforme documenta o seu livro Dada-Zen /Pintura-Escrita, editado em 2005. Alguns dos aspectos aí referidos afiguram-se pertinentes para a compreensão da transição do surrealismo figurativo para o surrealismo abstracto, de mais difícil aceitação pelo público em geral, apesar de André Breton ter já divulgado, desde 1928, a vocação abstracta do surrealismo, ilustrada com obras de Arp, Kandinsky, Klee, Miró, Masson, Matta, Paalen, Riopelle, Oscar Domingues, Michaux e Degottex, no seu livro O Surrealismo e a Pintura (1928-1965).

Dalila d'Alte-Rodrigues
2010

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