Tuesday 23 August 2011

ADAUTO NOVAES

Fonte: IHU ONLINE

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=16403


1/9/2008


A pessoa humana entre dois mundos


Adauto Novaes, professor e jornalista, em 2000, fundou a empresa de produção cultural Artepensamento, que organiza o ciclo de conferências Mutações - A Condição Humana.

Em artigo publicado no jornal Valor, 29-08-2008, ele reflete sobre O que é o home no mundo?

Eis o artigo.

Durante a realização do ciclo de conferências "Mutações - Novas Configurações do Mundo", em 2007, uma questão se impôs: o que é humano? A pergunta é, certamente, provocada por uma verdadeira revolução antropológica - revolução tecnocientífica - que, segundo alguns pensadores, tende a levar a uma "desqualificação definitiva" do homem. São múltiplos os caminhos que se abrem para responder à questão, mas o que nos interessa neste novo ciclo, intitulado "Mutações - A Condição Humana" pode ser resumido nesta pergunta: O que é o homem no mundo?

A resposta pede nossa atenção não apenas para a relação do homem com os outros homens, mas também com tudo o que é radicalmente diferente dele, o mundo não humano. Antes, porém, surge ainda outra pergunta: É possível, hoje, o diálogo entre ciência e pensamento? O que queremos sugerir é que existem pelo menos dois mundos que dificilmente se cruzam: um, que é instituído pela ciência e que se apresenta sempre como coisa acabada, e o mundo de nossa vida, construído por nossa experiência e de nossa ação, multiplicidade aberta e indefinida que se inscreve na natureza, na cultura e na história. Falar da condição humana consiste, pois, em tentar entender o estado da relação desses dois mundos.

Apresentamos, para início de discussão, 13 notas.

1. Os antigos, todos sabem, faziam da cidade a condição de uma vida plenamente humana. A famosa frase "o homem é um animal político por natureza" quer dizer, entre tantas interpretações, que o homem, dotado de uma linguagem articulada - o logos - tem a capacidade de fundar comunidades em que são definidos o justo e o injusto, o legal e o ilegal, os vícios e as virtudes, enfim, aquele que é capaz de criar as condições de "excelência para se fazer o que se deve, quando se deve, nas circunstâncias nas quais se deve, às pessoas às quais se deve, pelo fim pelo qual se deve, como se deve" ("Ética a Nicômaco", Aristóteles).

Em síntese, o homem é o criador de suas próprias condições de existência, animado por necessidades, desejos e direitos. Pensando assim, pode-se dizer que o destino ético da humanidade está dado: os modernos mostram, por exemplo, que o problema da origem e imputação do mal é deslocado do domínio metafísico e teológico para o domínio da moral: os males de que os homens são capazes são "sua própria obra". Mais: não é o homem isolado que é responsável, mas a sociedade humana. Seja na forma da passagem da natureza à política, ou na idéia de espírito universal, ou de razão, síntese da universalidade e da diferença individual encarnada na definição do Estado moderno, o que está posto em jogo é sempre a condição humana. Mas a pergunta do nosso tempo é: O que é feito da condição humana em um mundo que dedica uma reverência religiosa à mercadoria como algo que exerce uma potência sobrenatural sobre o homem? Que condição é essa que, na vida como no trabalho, reproduz sem cessar os mesmos gestos - em um tempo homogêneo e vazio, no qual se passa sempre a mesma coisa - gestos incapazes de criar a experiência de relações dotadas de sentido?

Com o grande avanço da biotecnologia e da tecnociência, outro problema se apresenta. A antropologia sempre nos disse que, apesar das diferenças, pode-se afirmar que todos os homens são iguais, o que nos permite ver o mundo com menos estranhamento, menos radicalmente diferente de nós mesmos. Podemos temer um mundo "vazio", isto é, que ele nos pareça "estranho" - escreve Kojève - "mas o medo desaparece (ou torna-se outra coisa, a angústia sem objeto transforma-se em um medo concreto diante do inimigo etc.) a partir do momento em que encontro outro homem: vejo logo que meu medo não tem sentido, que o mundo não me é tão estranho como o que me apareceu de início... Apesar de tudo, vendo outro homem, construo um sentimento de comunidade com ele". Mas o que dizer diante das promessas - realidade para muitos - de novos seres criados em laboratório, os cyborgs, os híbridos biotrônicos, a inteligência artificial equiparada à dos humanos, em síntese, diante de transumanos?

2. Com o advento da revolução tecnocientífica, a interação entre o homem e o mundo ganhou outros contornos, sem que nos déssemos conta da mutação: "De repente, viramos e o mundo inteiro mudou de rosto", escreveu Péguy, o que nos induz a pensar que entramos no novo mundo de costas. Quando conseguimos virar a cabeça, vemos um rosto tão desconhecido pelas inúmeras e impressionantes mudanças que tudo se mostra quase impenetrável, tornando difícil discernir qualquer imagem do humano. Certamente, não o reconhecemos por que temos ainda em mente, dominando nosso imaginário, o desafortunado e pouco nobre rosto do velho mundo que nos legou, entre tantos feitos positivos, invenções técnicas prodigiosas e teorias bem acabadas, a era da bomba atômica, anúncio da "revolução científica", como escreveu em manchete o jornal francês "Le Monde" no dia de Hiroshima, e mais 191 milhões de vítimas diretas e indiretas da violência política apenas no século XX, síntese de certa concepção de humano.

3. Qual é o lugar do homem na nova configuração do mundo, estruturada em uma cosmologia relativista e uma microfísica quântica "que delineia uma matéria dessubstancializada, elusiva e eivada de indeterminação, configurando-se uma realidade 'não-objetiva', fundamentalmente incerta", como escreveu o físico-filósofo Luiz Alberto Oliveira?

Cientistas e pensadores identificam três áreas que afetam de maneira radical a natureza humana: a hipercomputação, a biotecnologia e a neurociência. Percepções de espaço e tempo são alteradas da mesma maneira que o próprio corpo. Revolução antropológica e metafísica, como quer o filósofo Jean Baudrillard com a "inauguração de um mundo sem o homem... e o desaparecimento do sujeito, seja do poder, do saber ou da história" ou, pelo menos, sem o homem tal como o entendíamos até há pouco? A nova condição humana deve surgir nesse campo.

Mas suspeitamos que nosso maior problema, hoje, está no descompasso da relação entre ciência e pensamento. Ou, para usar os termos do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, no surgimento da rivalidade entre o conhecimento científico e o saber metafísico, entendendo por metafísico "não a construção de conceitos através dos quais tentaríamos tornar menos sensíveis nossos paradoxos", mas como a experiência de todas as situações da história pessoal e coletiva, "e de todas as ações que, assumindo-as, as transformem em razão". A conclusão de Merleau-Ponty no ensaio "O Metafísico no Homem" define bem nossa condição, hoje: "Uma ciência sem filosofia não saberia dizer literalmente do que fala; uma filosofia sem exploração metódica dos fenômenos só chegaria a verdades formais, isto é, a erros."

Para discutir essas questões, propomos um ciclo de conferências baseado em três eixos: Os fundamentos do humano; Visões trágicas do mundo; A caminho do pós-humano?

4. O pensamento rigoroso nos ensina que o homem não se define apenas pela ação política, que não é senão parte do ser. Há também o corpo e seus desejos, sujeito-objeto que participa do mundo e se opõe a todas as coisas do mundo, vínculo e ao mesmo tempo fissura entre o eu e o mundo, "entre o ser e o não-ser". A realidade humana é feita, portanto, de desejos sempre renovados. Esta é a grande contribuição da relação consciência-inconsciente.

A esse jogo pode-se denominar "espírito", não um espírito descarnado, longe dos estados do saber e dos meios e formas desse saber, mas um espírito-experiência, nascido da vida refletida, que envolve movimentos racionais, imagens, lembranças e paixões da alma, sensibilidade subjetiva, ação intelectual e percepção deliberadamente realizada, o ato de pensar e sua obra. É o espírito-experiência que se opõe à "natureza dada" (animal) que se repete incessantemente. Ele cria hábitos ou repetições que não existiam ainda. É certamente esse sentido que Paul Valéry atribui ao conceito de espírito como potência de transformação, da qual nasce a noção de entendimento discursivo.

O que há de peculiar entre nós, hoje, é que a superação das repetições - ou seja, as transformações da conservação - é muito rápida e talvez independente da nossa vontade e desejo e sem que possamos pensar essa passagem. São transformações produzidas por movimentos próprios da ciência e da técnica, movimentos que ganham a forma de produto, levando a percepção e o pensamento a uma transformação desigual, porque mais lenta. Ou melhor, não podemos dizer com certeza o que se conserva hoje. Esse descompasso de tempos torna difícil a construção de representações coerentes dos fenômenos criados pela tecnociência.

5. Pensar a civilização tecnocientífica significa pensar também a nova condição humana, aquilo que nos lança em direção a nós e contra nós - pôr em discussão não apenas as necessidades artificiais, mas também a origem dos problemas criados pelo próprio espírito. Seremos obrigados a pensar contra nosso próprio espírito? Tarefa difícil para aqueles que se sabem enraizados em um mundo passado e que acham pouco útil - para alguns pensadores, impossível - recorrer às idéias passadas para solução de problemas atuais. Isso não quer dizer que se tenha de abandonar a tradição ou o passado, tendentes a desaparecer. O filósofo Jacques Bouveresse nos lembra que a tradição, paraWittgenstein, não deve ser concebida "simplesmente como um obstáculo ou entrave às aspirações do indivíduo e ao progresso da espécie, mas igualmente como a condição de possibilidade de toda a forma de vida humanamente aceitável".

Em síntese, tornamo-nos verdadeiramente humanos quando criamos o mundo das "coisas vagas", entendendo por "coisas vagas" o mundo das artes, da política, do imaginário, da literatura etc., momento em que saímos de nós para entrar em nós.

Um ciclo de conferências sobre a condição humana precisa levar em conta esses conceitos de origem. O primeiro eixo do ciclo seria dedicado a essas questões.

6. O segundo eixo do ciclo de conferências pretende mostrar, através de alguns filósofos, a visão trágica do humano.

No prefácio de "A Crise da Cultura", Hannah Arendt tem uma definição precisa do que acontece. Vivemos, diz ela, uma cisão entre o passado e o futuro, "intervalo no tempo que é inteiramente determinado por coisas que não mais existem e por coisas que não existem ainda. Na história, esses intervalos mostraram, mais de uma vez, que podem ocultar o momento da verdade". Hannah Arendt referia-se não apenas ao tempo histórico, mas ao "estranho entre-dois", isto é, o momento indeterminado, ou o vazio de pensamento, da passagem para o mundo de um novo pensamento.

Mas, para se falar da condição humana no mundo moderno, somos levados a recuar na história, não para buscar analogias - isso não faz nenhum sentido, uma vez que a mutação, hoje, parte de outros pressupostos: se a era moderna nasce com as matemáticas puras, a mecânica e a física e todas as espécies de variações mensuráveis, temos hoje um domínio sem precedentes da ciência e da técnica e, ao mesmo tempo, um predomínio da biotecnologia. Se o mundo moderno foi a abertura de fronteiras em todos os sentidos, um florescimento em todas as áreas, nossa condição, hoje, é feita no vazio do pensamento, em uma enorme ausência de paradigmas. A pergunta mais radical que se põe é se o mundo moderno, tal como construído pelo homem, pode ainda ser compreendido no seu conjunto pelo próprio homem ao fim de uma trajetória com resultados tão obscuros e enigmáticos, como insinua Baudrillard.

7. Somos herdeiros de uma primeira revolução científica e de certa racionalidade. Lemos, por exemplo, em uma das passagens de Descartes: "As sementes das ciências estão em nós." Por mais paradoxal que possa parecer, ao lermos esse axioma tendemos a pensar que o espírito ganha uma dimensão infinita, abstração ideal materializada nas idéias de movimento e progresso, enquanto o homem perde a sua potência para "reinventar um universo finito".

A imagem antiga do universo era a de que tudo no cosmo, perfeitamente ordenado, era construído inteiramente para o homem e à sua medida. A física de Descartes redefine essa idéia. No seu lugar, ele põe as idéias de extensão e movimento. Ou matéria e movimento. Tudo não é senão matéria e movimento, e essa noção vai alterar fundamente a idéia de ordem em todos os campos. O universo não é ordenado para o homem: ele não é mais 'ordenado'. A estrutura do mundo - comenta Alexandre Koyré - "não implica nenhuma finalidade, e não se explica por um fim; ela resulta das leis matemáticas do movimento". "O mundo não está na escala humana, ele está na escala do espírito... O nascimento da ciência cartesiana é, sem dúvida, uma vitória decisiva do espírito. É, entretanto, uma vitória trágica: neste mundo infinito da nova ciência, não há mais lugar para o homem, nem para Deus. Koyré prossegue: "Se tudo é possível é por que nada é verdadeiro. E se nada é certo, apenas o erro é certo", e pouco a pouco a dúvida se estabelece. É nesse momento de incerteza que se procura resposta às questões: O que é o humano? Quem somos? Onde estamos? Para onde vamos? O homem busca o seu lugar "na grande cadeia do ser" e na ordem do mundo. Ou seja, no momento de grandes mutações, quando mundo e ser enfrentam a incerteza e o vazio, o trabalho do pensamento tende a começar por interrogar o homem, sua existência e destino. O que é, pois, humano, hoje?

8. O humano é constituído da idéia de experiência, não no sentido matemático e técnico apenas. Isto é, experiências são atos conscientes, que permitem separar e articular meios e fins. Talvez uma das idéias mais precisas seja a de Merleau-Ponty: "O ser é o que exige de nós criação, para que dele tenhamos experiência." Humano e experiência andam juntos. É a experiência que dá sentido ao homem, idéia impressa na própria palavra - sair de si, rumo ao exterior, "viagem e aventura para fora de si, inspeção da exterioridade". Merleau-Ponty conclui, em uma nota de "O Visível e o Invisível", que experiência é permanente iniciação aos mistérios do mundo: "É à experiência que nos dirigimos, para que nos abra ao que não é nós". É isso o existir como um humano. Sair de si para entrar em si.

Quando Paul Valéry escreve que é preciso interessar os espíritos pelo destino do espírito, ele deixa claro, no ensaio sobre a liberdade do espírito, que é a relação do homem com o mundo que está posta em questão: verdades estão quase mortas, valores em baixa, esperanças e crenças arruinadas, inclusive a confiança no espírito, confiança que era o fundamento da vida. Os tesouros criados não são, portanto, imortais, como nos lembra Valéry: "Escrevi há muito tempo, em 1919, que as civilizações são tão mortais como qualquer ser vivo, que não é mais estranho pensar que a nossa possa desaparecer com seus procedimentos, suas obras de arte, sua filosofia, seus monumentos, como desapareceram tantas civilizações desde as origens - como desaparece um grande navio que afunda."

9. Valéry não está sozinho nessa visão trágica da civilização ocidental. Nietzsche, e em seguida Spengler, Kraus, Musil, Wittgenstein e Heidegger (por diferentes análises) caminham no mesmo sentido: no fundo, a crítica da civilização dominada pela ciência e técnica. "O conhecimento transformou-se, em nós, em uma paixão que não teme nenhum sacrifício e no fundo nada teme, a não ser sua extinção... Talvez a humanidade esteja a ponto de morrer dessa paixão de conhecimento!" (Nietzsche). Assim, o ser do homem estende-se para além de todas as antigas fronteiras, o infinito muda de sentido, para tornar-se uma realidade antropológica.

Essa mudança axiológica em referência ao poder humano de estabelecer valores - escreve Eugen Fink - "rompe os limites estreitos dos quais se tinha a compreensão do homem por ele mesmo, mas, assim liberado de seus entraves, o homem perde os contornos da finitude. Não seria uma vaidosa pretensão do seu ser querer ser todas as coisas, pretender ser criador de todo o universo de significações culturais?" Como resultado dessa construção, lemos um futuro sombrio da civilização técnica, como escreveWittgenstein: "A concepção apocalíptica do mundo é, propriamente falando, aquela segundo a qual as coisas não se repetem. Não é desprovido de sentido, por exemplo, acreditar que a época científica e técnica é o começo do fim da humanidade; que a idéia do grande progresso é uma ilusão que nos cega, como aquela do conhecimento finito da verdade; que no conhecimento científico nada existe de bom e desejável e que a humanidade, que se esforça por alcançá-lo, precipita-se numa armadilha. Não está absolutamente claro que este não seja o caso."

Essa é também a visão de Karl Kraus: "O progresso, de cabeça para baixo e de pernas para o ar, dança no éter e garante a todos os espíritos rasteiros que domina a natureza. Ele inventou a moral e a máquina para expulsar a natureza do homem e da própria natureza, e sente-se ao abrigo em uma construção do mundo cuja histeria e conforto mantêm a consistência. O progresso celebra a vitória de Pirro sobre a natureza. O progresso fabrica porta-moedas com a pele humana." E mais: "O verdadeiro fim do mundo é o aniquilamento do espírito." Kraus pergunta ainda: Depois do aniquilamento do espírito, pode ainda existir um mundo?

10. Hoje, também o trabalho do espírito passa por grande mutação. O trabalho puramente funcional e técnico que lhe é atribuído pela tecnociência tende a pô-lo em questão. Pode-se dizer que o espírito, incapaz de compreender o vir-a-ser do mundo, "teria conseguido imprimir ao mundo as leis do seu próprio vir-a-ser" (Gaède, 346), isto é, um mundo incompreendido e incerto. Mais: diante daquilo que o próprio espírito criou, não só no campo dos objetos, mas também no do pensamento (racionalidade técnica), o que esperar? A resposta de Valéry, "angustiante e angustiada", parece evidente: o espírito tornou-se impossível - impossível porque supérfluo. Lemos em muitos de seus ensaios a advertência: o espírito sofre perigo mortal.

O comentário do filósofo Eduard Gaède no seu "Nietzsche et Valéry - Essai sur la Comédie de l´Esprit" parece certeiro: quando, para caracterizar a época contemporânea, "Valéry põe em evidência a desordem, a incoerência, a imprevisibilidade, que a dominam, ele sabe que essa desordem não decorre das ficções, dos mitos e dos ídolos, mas daquilo que o espírito produziu de mais racional (...) Enquanto a precisão científica entrou, pouco a pouco, no comércio do homem com a natureza, 'as relações do homem com o homem permaneceram dominadas por um empirismo detestável'".

11. Sobre o desaparecimento do indivíduo com o aperfeiçoamento das estruturas coletivas nas quais ele está enredado, diz Gaède: "A civilização, amparando-se nas próprias ações, reconhecendo e explorando racionalmente seus recursos - agindo de maneira metódica - deixa sempre menos espaço à pessoa e tende a suprimi-la. Assim, ela trabalha para destruir aquilo mesmo que constitui sua substância vital e que, por uma espécie de criação contínua, a mantém no ser: ela tende, pois, a se abolir a si mesma. É o mesmo movimento de autodestruição que, no espírito do homem, abole as idéias". Dir-se-ia que o espírito, incapaz que foi de compreender o futuro do mundo, conseguiu imprimir no mundo as leis de seu próprio futuro.

Lemos na abertura de "O Olho e o Espírito", de Merleau-Ponty: "A ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las... Ela é, sempre foi, esse pensamento admiravelmente ativo, engenhoso, desenvolto, esse parti pris de tratar todo ser como 'objeto em geral', isto é, a um tempo, como se ele nada fosse para nós e, no entanto, se achasse predestinado aos nossos artifícios... O pensamento 'operatório' torna-se uma espécie de artificialismo absoluto, como se vê na ideologia cibernética, em que as criações humanas são derivadas de um processo natural de informação, porém concebido, por sua vez, segundo os modelos das máquinas humanas."

12.Hoje, portanto, são muitas as determinantes que põem em causa o humano. Lembremos do que disse Kraus, para quem o advento da ciência e da técnica é o provável começo do fim da humanidade: "...no fim de tudo, há uma humanidade morta deitada ao lado de obras que custaram tanto espírito para serem inventadas, mas nenhum espírito restou para utilizá-las. Fomos muito complicados para construir a máquina e somos muito primitivos para nos servirmos dela", escreve ele no famoso texto chamado "Apocalipse".

Em outro ensaio publicado recentemente e também dedicado às conseqüências da razão técnica, o filósofo Jacques Bouveresse diz que Kraus estima que a crença romântica nas virtudes do progresso científico e técnico decorre do fato de as pessoas julgarem a situação atual "em função de conceitos que cessaram há muito tempo de se aplicar e que falam dela em uma linguagem completamente ultrapassada, esquecendo-se de que um processo que se tornou completamente autônomo e cego e que quase se faz no essencial sem o homem e mesmo, em certos casos, contra ele, não deveria suscitar nenhuma exaltação romântica. O progresso, de um lado, e a moral convencional, de outro, parecem ter feito hoje uma aliança ofensiva contra a natureza em geral e contra a natureza humana em particular: '(O progresso) inventou a moral e a máquina para expulsar da natureza e do homem a natureza'..."

13. O terceiro eixo do ciclo de conferências vai fazer algumas incursões nas grandes transformações da idéia de humano a partir da revolução tecnocientífica e biotecnológica.

Um fragmento do livro "Condição do Homem Moderno", de Hannah Arendt, impressiona pela proximidade do que escreveu Kraus e pela condição trágica do nosso tempo: "É possível que nós, criaturas terrestres que começamos a agir como habitantes do universo, não sejamos mais capazes de compreender, ou seja, de pensar e de exprimir as coisas que, no entanto, somos capazes de fazer. Nesse caso, tudo se passaria como se nosso cérebro, que constitui a condição material, física de nossos pensamentos, não pudesse mais acompanhar o que fazemos, de modo que, doravante, teríamos realmente necessidade de máquinas para pensar e para falar em nosso lugar."

Texto impressionante, pela crueza da forma e pela precisão, que levou o filósofo Gerard Lebrun a comentar que é agora que temos "realmente necessidade" de máquinas, "mas como muletas, a tal ponto que o uso desses aparentes 'gadgets', que não tínhamos vocação de dominar, nos aleijou. Pior ainda: habituados a serem superados pelas maravilhas crescentes da técnica, no sentido em que se é 'superado pelos acontecimentos', os humanos quase perderam a idéia de que valeria a pena dominar esse progresso..."

Nossa proposta consiste, portanto, em retomar o tema das mutações, mas, desta vez, pondo o homem e a idéia de humano no centro dos debates. De Heidegger a Foucault, chegando até aos cientistas e filósofos contemporâneos, uma das grandes questões está na idéia da morte do sujeito, na crise da subjetividade. Temas como experiência histórica, novas noções de espaço e tempo, transformações da percepção etc. serão também discutidos neste novo ciclo de conferências.

hugh


‘Yearning for a more beautiful world’: Pre-Raphaelite and Symbolist works from the collection of Isabel Goldsmith

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